Literatura infantil e mudança social – uma análise crítica

 

Tradicionalmente, a literatura infantil é um domínio do campo educacional. A família e a escola são os espaços dominantes onde os livros para crianças são escolhidos e lidos. E esses espaços têm sido associados a papéis culturalmente designados às mulheres. O dever de ensinar, historicamente, tem sido atribuído às mulheres, como mães ou professoras. Uma pesquisa do Censo Escolar 2018 mostrou que 80% dos 2,2 milhões dos docentes da educação básica brasileira são mulheres[1]. Além disso, dados do IBGE 2009 revelaram que “quase 90% das mulheres que trabalham fora declararam que cuidam também dos afazeres domésticos, contra 46,1% dos homens na mesma situação”[2].

 

Essas funções impostas existem num contexto em que as mulheres e as crianças são culturalmente esvaziadas da sua força ideológica e política, tornando-se forças secundárias que apoiam espaços atribuídos ao masculino, supostamente mais sérios e importantes: política, economia, o ensino e a pesquisa acadêmicos, e a liderança de instituições, incluindo as “femininas”, como as escolas.

 

Portanto, a literatura infantil existe dentro de uma estrutura social onde as mulheres e crianças são secundárias, o que gera ao menos duas implicações para esse tipo de literatura:

 

  • Ela pode servir à manutenção dessa estrutura, reforçando os estereótipos das mulheres e das crianças. Isto é conseguido, por exemplo, por meio da existência de uma grande maioria de heróis e protagonistas masculinos, que interagem com personagens femininos secundários, que os apoiam (como a série best-seller Harry Potter, onde o personagem principal, Harry; seu mentor, Dumbledore; e o vilão principal, Voldemort, são personagens masculinos[3]), e através da ausência de personagens infantis política e socialmente conscientes[4], em favor de versões “infantilizadas” da infância, como no clássico “Poliana”[5].

 

  • Pode se tornar um meio de impor estereótipos em outros domínios sociais e culturais, como raça, sexualidade, relacionamentos, trabalho, dinheiro, consumismo, espiritualidade, ética, estética e muitos outros. Uma vez que as mulheres e as crianças são esvaziadas de sua força política e ideológica, elas se tornam meros “reprodutores” de como as forças dominantes concebem esses domínios, e, portanto, compram e leem livros produzidos por esta cultura dominante, em vez de gerar e disputar por narrativas próprias. Um exemplo ilustrativo são os livros de Monteiro Lobato, que se tornaram clássicos brasileiros lidos em casa e na escola, e que influenciaram muitas gerações, mas reproduzem estereótipos sociais, raciais e de gênero que agora estão sendo abertamente criticados[6].

 

Na verdade, as tendências dominantes da literatura infantil tentam se travestir de universalistas e divorciadas do contexto social. Elas não se colocam como literatura capitalista, branca, masculina ou heterossexual – mas apenas como “literatura”. No entanto, como afirma Arlene Davila, há uma “impossibilidade teórica de que qualquer forma de arte careça de um contexto social e político “[7]. T.V. Reed converge com essa visão, dizendo que “qualquer texto estético pode ser usado para fins políticos, e todos os textos estéticos têm implicações políticas”[8]. Na verdade, como Jeff Chang[9] argumenta, tudo pode ser usado como uma forma de propaganda – e isso não seria diferente com os livros infantis.

 

No entanto, movimentos sociais como os feminista, afro-americano, asiático-americano, LGBTQ, os movimentos de direitos ambientais e das pessoas com habilidades especiais têm, desde o século 20, mudado esse cenário. Não no sentido de que o universo da literatura para crianças é agora predominantemente multicultural, de uma maneira ampla e equânime, mas no de que agora há uma disputa mais clara e significativa entre as diversas narrativas. Esses movimentos, ao todo e em geral, difundiram elementos culturais que eram novos, alternativos ou conflitantes com a cultura mainstream, que mais tarde foram diluídos nesta mesma cultura mainstream, abrindo espaço para um repertório mais amplo sobre a literatura infantil[10].

 

Talvez um dos exemplos mais pungentes é o movimento feminista, uma vez que, como argumentado antes, a literatura infantil tem existido principalmente em um domínio tradicionalmente feminino (embora muitos dos autores mais vendidos sempre tenham sido homens). Como T.V. Reed explica: “Um dos mais conhecidos slogans a emergir do novo movimento das mulheres foi a frase ‘o pessoal é político.’ O argumento básico foi que, dada a separação histórica do mundo ocidental em uma esfera pública masculina (de negócios, arte e governo) e uma esfera privada feminina (de questões domésticas e familiares), apenas mudando a definição de política para incluir a esfera ‘pessoal’ privada seria possível abordar toda a gama de maneiras em que as mulheres foram oprimidas.”[11]. Consequentemente, poderíamos igualmente entender a literatura das crianças não somente como assunto da vida “privada”, mas como da esfera “política” também. E, não surpreendentemente, as últimas décadas (pós movimentos feministas) viu um aumento nos livros que falam e são escritos por mulheres e autores etnicamente diversos e que expressam visões de mundo que são alternativas ou confrontantes às dominantes.

 

Como exemplo, dos 80 primeiros vencedores do Prêmio Nobel de literatura (a partir de 1901 Para 1985) 74 eram homens brancos, seis eram mulheres brancas, e apenas setes não eram oriundos da Europa, dos Estados Unidos ou da Austrália. Em 1986, houve um primeiro vencedor negro – o escritor Wole Soyinka. Em 1993, venceu a primeira mulher negra (Toni Morrison). Nos próximos 23 anos, (de 1994 a 2017), houve seis mulheres vencedoras (todas brancas), três não-europeus ou norte-americanos e nenhuma outra pessoa negra[12]. Estes números estão longe de ser ideais, mas mostram uma progressão, mesmo que lenta, se comparados aos primeiros 80 anos de prêmio Nobel. E embora haja uma profusão de escritores mulheres e etnicamente diversos, que existem para muito além de um prêmio como o Nobel, a entrada de mais diversidade na premiação revela a tensão de narrativas alcançando um espaço da cultura dominante. Mesmo que esses escritores não sejam necessariamente autores de livros infantis, eles sugerem um padrão que provavelmente se repete na literatura infantil.

 

Em um sentido prático, o impacto dos movimentos sociais, como o feminista, significa que hoje em dia a predominância ainda existente de autores e protagonistas brancos e masculinos em livros infantis coexiste com um aumento – mesmo que ainda não equânime – no número de autores e protagonistas femininos e/ou negros e, em menor grau, de indígenas, LGBTQ e pessoas com deficiências. E que narrativas sobre princesas, heróis, guerras e conquistas vivem lado a lado com narrativas sobre colaboração, empoderamento e respeito pela natureza.

 

No entanto, quando se trata de livros infantis, cinco coisas devem ser esclarecidas, a fim de entender como as narrativas dominantes e marginais existem e disputam entre si:

 

  • A literatura infantil é muitas vezes metafórica, e, portanto, os personagens masculinos, heterossexuais e brancos não necessariamente aparecem como um “homem ou menino brancos”, mas como um brinquedo, animal, planta ou ser mágico masculinos, que estão associados com a cultura européia, ocidental ou do hemisfério norte – o protagonista será um urso americano, e não uma onça brasileira, ou uma árvore associada com climas frios, como um pinheiro, e não uma palmeira de clima quente. “Heteronormatividade” aparece como personagens exibindo comportamento e linguagem que são “associados” às pessoas hétero, ou evitando os que estão associados com o público LGBTQ (com exceção de papéis cômicos secundários). Um bom exemplo é a coleção de livros “Toy Story”[13].

 

  • Há uma diferença entre o conteúdo multicultural que é gerado por autores que vêm de culturas diversas e o que é criado por autores de culturas dominantes, como uma forma de apropriação cultural, mesmo que bem-intencionada. Um livro infantil que tem um menino nativo-brasileiro como um personagem principal vai diferir culturalmente, politicamente e mesmo esteticamente se o autor é branco ou uma pessoa nativa. Por exemplo, “A invenção do mundo pelo Deus-curumim” é um livro vencedor do Jabuti (mais importante prêmio da literatura brasileira) escrito pelo autor branco Bráulio Tavares, e que se centra na cultura nativo-brasileira[14].

 

  • A predominância de valores mainstream (como os das culturas capitalista, machista, branca e heteronormativa) na literatura das crianças não pode ser medida apenas usando o indicador “livros best-sellers“, porque os livros best-sellers são frequentemente livros clássicos, tais como “O Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupéry, ou fenômenos mais recentes como “Harry Potter”, de J.K. Rowling. Esses livros expressam visões masculinas, brancas, euro centradas, embora também tenham elementos que desafiam os principais valores dominantes – e sejam elogiados artisticamente. A predominância de valores dominantes é provavelmente mais presente na soma de vários livros de volume de venda pequeno ou médio, alguns que são spin-offs de brinquedos e filmes muito vendidos (como os livros da Barbie[15]), e que são meros produtos comerciais para realimentação do sistema dominante.

 

 

 

  • Diferente dos livros de adultos, que mais frequentemente tomam partido político e ideológico, e podem ser mais claramente categorizados como pertencentes a um determinado conjunto de valores, nos livros infantis os valores humanísticos muitas vezes coexistem com os do sistema opressor, criando confusão sobre o quão valioso o livro é para a mudança social. A maioria dos livros infantis abordará valores como colaboração, amizade, generosidade, alegria, amor e altruísmo. Entretanto, esses valores são entendidos de forma diferente a depender do autor e de sua cultura, e os diferentes entendimentos podem, em si, carregar elementos de libertação ou opressão. Além disso, mesmo tendo valores universais como temas centrais de suas narrativas, as histórias podem circunscrever suas narrativas dentro de um contexto dominante (personagens brancos, heróis masculinos, referências euro centradas etc.). Por exemplo, a já citada Poliana[16]. Em outras palavras, alguns livros não vão defender explicitamente uma visão machista, por exemplo (como um livro adulto mais frequentemente faria), mas em vez disso, defenderá valores universais que são vividos através de uma narrativa centrada no homem. Se a narrativa é contestada como sendo machista por alguns, e, portanto, não sendo ressonante com a mudança social, seria elogiado por outros como socialmente valioso, por inspirar valores universais. Como Arlene Goldbard diz: “cada cultura tem maneiras, mesmo que distintas, de encontrar o universal na experiência humana, do nascimento à morte, e muitas dessas maneiras ressoam através de barreiras culturais. Mas alcançar essas convergências começa sempre por um encontro com a diferença – independente se de lugar, etnia, idade, orientação ou outra condição da vida – e em defini-la como algo a ser valorizado”[17].

 

  • Embora a mudança social nas artes é frequentemente associada com ir além das visões dominantes sobre raça, gênero, orientação sexual e capacidade, ou o a mentalidade capitalista (com seus valores, por vezes, predatórios e consumistas), quando se trata de literatura infantil, existe outra disputa que é muito presente e significativa: as tensões entre uma visão de mundo centrada no adulto e outra centrada na criança. Ou, dito de outra maneira, entre as diferentes visões sobre a criação das crianças e a educação infantil. Deveriam os livros infantis ensinarem as crianças (de qualquer raça, cultura e gênero) a serem obedientes ou a serem contestadoras? Devemos estimulá-las a serem duronas e não chorarem ou a serem vulneráveis e a expressar emoções? Devemos conversar com elas de uma forma “infantilizada” ou direta, como falamos com os adultos? Devemos sustentar que o mundo é “bondade, verdade e beleza” ou falar sobre as dificuldades da vida (uma tensão que se relaciona com a citada por John Verger em sua série “Maneiras de Enxergar”[18], ao falar sobre os contrastes entre a propaganda (a vida que queremos) e as notícias (a vida que queremos longe)? Bons exemplos são os livros da série criada por Jen Porter, cujos títulos são, por exemplo, “Aprendi a ser gentil” e “Aprendi a ser bonzinho”[19]. Essas tensões estão ligadas às anteriores, uma vez que, por exemplo, a tensão entre definir coragem como “não chorar” ou como “ser vulnerável” são diretamente inspiradas nas tensões entre as compreensões machista e feminista de gênero. Ainda assim, as tensões em torno da criação e do comportamento da criança compõem um domínio específico ao qual a maioria dos livros infantis está sujeita e é útil compreendê-lo tanto em sua especificidade quanto em sua associação com outras tensões sociais.

 

Portanto, a literatura infantil socialmente engajada é importante não só para criar contra narrativas às culturas dominantes, mas também para combater a apropriação cultural e a representação deturpada que pode ser feita das culturas marginais e dos valores que desafiam o sistema dominante.

 

T.V. Reed, ao falar sobre mudanças culturais que resultam dos processos de “defusão” (ou, traduzindo grosseiramente, de diluição) dos movimentos sociais, diz que “Essas mudanças são quase sempre altamente mediadas e indiretas. E quando elas não são indiretas, elas tendem a ser superficiais, uma vez que apenas as formas e as normas vistas como não-ameaçadoras são abertamente adotadas (como quando, por exemplo, as formas culturais do movimento Black Power são reduzidas a penteados afro e uma preferência por estilos de vestir pseudo-africanos). No entanto, mesmo estas apropriações ‘defusas’ muitas vezes carregam com elas elementos suplementares dos contextos mais politicamente carregados em que inicialmente apareceram (um interesse pela África ocasionado pela curiosidade sobre o manto dashiki pode justamente levar a sérias realizações políticas).”[20]

 

A perspectiva de Reed se aplica à literatura infantil, tanto no sentido de reconhecer como a literatura engajada que se origina nas bases (livros de autores que vêm de culturas marginalizadas, por exemplo) cria mudanças, e no de que mesmo os livros mainstream que resultam de apropriação cultural de autores culturalmente dominantes ou que minimizam cargas políticas e ideológicas também servem, até certo ponto, para inspirar a mudança social. Portanto, trazer a mudança social ao centro do debate da literatura para crianças será útil mesmo quando os autores culturalmente dominantes são ainda os que são mais frequentemente publicados, vendidos e lidos, porque eles ainda assim deixarão vestígios de desvio cultural em seus livros que podem ser aprofundados por leitores curiosos e despertos para a consciência social e política.

 

Portanto, a literatura infantil pode desempenhar um papel vital na mudança social. Estas são algumas maneiras em que isso pode acontecer:

 

  • Conteúdo: Como já defendido, narrativas que expressam múltiplas culturas e visões de mundo são uma forma poderosa de afiliar a literatura infantil à mudança social.

 

  • Língua: Trata-se de não apenas falar sobre a cultura diferentes, mas falar sobre elas de uma forma diversificada, utilizando linguagens e referências visuais locais; também, significa contestar o significado das palavras e imagens, dando aos leitores a possibilidade de compreender conceitos-chave, como a beleza e a verdade, a partir de diferentes perspectivas, e não apenas de uma visão dominante. Jeff Chang cita a edição de 1984 do Mandato para a Liderança da Fundação Heritage, que diz: “Durante vinte anos, a batalha mais importante no campo dos direitos civis tem sido a para o controle da linguagem.”[21]

 

  • Autoria: Independente de se o contexto do livro trata de diversidade cultural ou não, o fato de que as histórias sejam escritas e ilustradas por autores de culturas múltiplas é uma maneira de amplificar o multiculturalismo na literatura e na sociedade. E, com isso, contrariar “o quão poderosamente distorcidas as representações mainstream podem ser quando as questões de equidade e economia criativa estão em jogo”, como afirma Arlene Davila[22].

 

  • Produção: lutando e protestando de maneiras diferentes para defender que livros e autores de culturas diversas sejam publicados e amplamente distribuídos; para que livros e autores relegados e esquecidos voltem a ser redescobertos e valorizados; e para que livrarias, feiras literárias e competições ampliem sua noção do que é uma literatura de “qualidade” e abracem a literatura culturalmente diversificada. As reflexões de Jeff Chang, sobre como os “formalistas”, nas artes visuais, usavam a noção de qualidade para desmerecer artistas de culturas marginalizadas, aplicam-se perfeitamente a este ponto: “Os movimentos vanguardistas multiculturais insurgentes eram um sinal horripilante do caos e do desgoverno. Se os formalistas estavam reagindo contra as palavras “reconhecimento” e “representação”, eles também estavam se debatendo em torno de uma outra palavra: “qualidade”. A palavra “Q” carrega o sentido de mérito, ordem, universalidade, e o intemporal. Era o oposto daquela outra palavra Q: quotas.”[23]

 

  • Inspiração: escrevendo, ilustrando e lendo a literatura infantil de muitas maneiras – não apenas como livros publicados, mas como textos open source na Internet, filmes e animações adaptados, e como livros recitados em eventos públicos – como uma forma de “invocar nossa coragem”, como afirmou por Grace Lee Boggs. Ela diz que “O que realmente mantém nosso tecido social inteiro são atividades locais que não são feitas por dinheiro: atividades domésticas, serviços de negociação com vizinhança e amigos, empresas cooperativas”[24]. E a literatura infantil faz parte disso. É também uma forma de sustentar a nossa capacidade de nos maravilhar. Arlene Goldbard cita o Rabino Abraham Joshua Heschel, que entende o “maravilhamento” como “espanto radical”. Ele diz: “A humanidade vai não perecer por falta de informação; mas apenas por falta de apreciação (…) O que falta não é uma disponibilidade para acreditar, mas uma disponibilidade para nos maravilhar”[25].

 

  • Engajamento Comunitário: a relevância da estética em um livro infantil é irrefutável: quanto melhor o produto-final, mais ele se tornará uma obra de arte atemporal e universal. No entanto, como afirmado por Arlene Goldbard, o processo é tão importante quanto o produto-final[26]. Portanto, a criação de literatura infantil que é predominantemente didática e que serve para orientar um grupo ou comunidade (ou seja, que falam sobre sistemas de água ou reciclagem, como o livro “O Saci e a Reciclagem do Lixo”[27]); ou que é criado por crianças ou membros de uma comunidade, como uma forma de desenvolvimento pessoal ou comunitário (como o projeto social “Primeiro livro”[28]), é também uma maneira poderosa de envolver a literatura infantil com a mudança social. De fato, facilitar a criação de livros que sejam feitos pelas próprias crianças, ou que sejam escritos a partir da escuta de suas vozes, é uma poderosa maneira de aliar a literatura infantil à mudança social. Independente da qualidade do produto-final, o processo de dar voz à infância, em primeira pessoa, gera transformação e desenvolvimento para adultos e crianças.

 

Essas maneiras diferentes são, essencialmente, meios para um papel maior que a literatura infantil pode desempenhar: de ajudar a moldar, criar e sustentar a transformação dinâmica de identidades pessoais e coletivas. As palavras de T.V. Reed sobre poesia (mas que poderia ser sobre a literatura infantil) expressam precisamente esta percepção: “Mais uma vez, o ponto é que a poesia não simplesmente ‘reflete’ ideias que já estão no ar, mas sim ao dar ‘forma’ para  essas ideias as traz para a existência pública, e ajuda a inventar identidades, não apenas a expressá-las.[29].

 

Ao falar sobre movimentos sociais, ele traz uma visão adicional de como a literatura infantil interage com as identidades: “As identidades não são formas congeladas nas quais novos conteúdos podem ser derramados. Nem são criações individuais. Todas as identidades são identidades coletivas. E os movimentos sociais estão entre as forças-chave que transformam/criam novas identidades culturais.”[30]. Portanto, é a multiplicidade de livros infantis, escritos por diversos autores, sobre temas diversos, em diversas linguagens, e por meio de diversos processos, que podem atuar, na forma de movimento social, como motor de identidades coletivas, de forma sustentável.

 

Ao cruzar a análise acima com o trabalho que podemos desenvolver como autores e/ou curadores da literatura infantil, surgem alguns caminhos:

 

  • Escrever ou selecionar livros que expressam nossos “lugares de fala”. Isso significa, de um lado, usar experiências de nossa biografia e de nosso lugar social (nossos traumas e conquistas, nossas vivências como pertencentes a uma certa raça, gênero ou classe etc.) como inspiração e, de outro lado, olhar para biografias e lugares sociais alheios a partir de nossa perspectiva (por exemplo, refletir sobre racismo a partir do lugar da branquitude, se eu for branco, em vez de falar “sobre o negro”).

 

  • Ao escrever sobre ou selecionar livros sobre temas transversais às culturas, tais como questões ambientais, criação de filhos e problemas de comportamento e valores universais, estar ciente de que nossos entendimentos sobre essa questões são específicos e culturalmente determinados (e não universais e atemporais), e nos dar conta das narrativas nas quais essas questões estão circunscritas. O livro em questão fala sobre meio-ambiente dentro de um contexto totalmente racialmente branco? O livro universaliza ideias sobre a criação de crianças que são principalmente aplicáveis a uma família de classe média? Estou falando de valores universais de uma forma que coloca em sua maioria homens heterossexuais como líderes desses valores?

 

  • Engajar-se em processos de facilitação para a escrita e a leitura comunitária de livros infantis, seja criando projetos desse teor em nossas comunidades ou participando como voluntário ou empreendedor em projetos que já existem.

 

  • Recuperar livros da literatura local e mundial, de diversas épocas históricas, que trazem consigo o potencial para evocar a mudança social, mas que ou foram esquecidos, ou não foram vistos e interpretados por esse viés, e esforçar-se para torná-los parte do repertório do que é lido pelas crianças em casa, na escola, na biblioteca etc.

 

  • Achar maneiras de dar voz à infância: deixar que as crianças façam a curadoria dos livros que leem a partir daquilo que lhes é relevante (como fruto de um diálogo crítico com elas, e não apenas “obedecendo suas vontades”) e as estimulando a escrever livros ou a pautar autores de histórias infantis (enviando para eles sugestões e feedbacks).

 

  • Engajar-se, como pesquisador ou leitor, em estudos que busquem refletir sobre a literatura infantil e a mudança social, criando e/ou participando de workshops e palestras sobre o tema, inspirando assim outros pensadores artistas, editores, vendedores e leitores.

 

Com tudo isso em mente, podemos fazer a transição do “era uma vez”, no qual só UMA cultura tem VEZ, para o “eram tantas vezes”, o TANTAS significando a multiplicidade de histórias, culturas e perspectivas humanas, e o VEZES refletindo os vários recursos e oportunidades para que essas histórias, culturas e oportunidades cheguem a qualquer criança – e a todos nós.

 

O foco do trabalho de Gustavo Barreto Prudente é apoiar o desenvolvimento de lideranças e culturas sustentáveis. Faz isso como empreendedor social, consultor organizacional, coach, pesquisador, facilitador de processos de aprendizagem e escritor. É autor e colecionador de livros infantis e facilita espaços de reflexão sobre literatura infantil. É mestrando em Sustentabilidade Cultural pela Goucher College (EUA). Saiba mais em www.gustavoprudente.com.br  

 

OBS: as citações de livros em inglês são traduções livres feitas pelo autor.

[1] http://fundacaotelefonica.org.br/noticias/80-dos-docentes-da-educacao-basica-brasileira-sao-mulheres/

[2] https://oceanoazulresearch.wordpress.com/2010/03/09/segundo-o-ibge-quase-90-das-mulheres-que-trabalham-fora-declararam-que-cuidam-tambem-dos-afazeres-domesticos/

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Harry_Potter

[4] A ideia de infância social e politicamente consciente não implica impor às crianças discussões para as quais elas ainda não estão intelectualmente e emocionalmente maduras, mas significa, sim, não negar a elas uma reflexão crítica sobre si e sobre o mundo, dentro do seu repertório e a partir de sua curiosidade, e de não fingir que os contextos das histórias que elas leem são universais, atemporais e apolíticas, mas deixar que elas percebam que as histórias que leem são expressão de uma cultura específica, com valores específicos.

[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pollyanna

[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Monteiro_Lobato; Sobre crítica ao conteúdo racista nos livros de Monteiro Lobato: https://www.geledes.org.br/literatura-e-racismo-uma-analise-sobre-monteiro-lobato-e-sua-obra/

[7] Arlene M. Dávila, Culture works : space, value, and mobility across the neoliberal Americas, 1 online resource (ix, 232 pages) vols. (New York: New York University Press, 2012), http://public.eblib.com/choice/publicfullrecord.aspx?p=865597.

[8] T. V. Reed, The art of protest : culture and activism from the civil rights movement to the streets of Seattle, 1 online resource (xxiii, 362 pages) : illustrations vols. (Minneapolis, Minn.: University of Minnesota Press ;, 2005), http://public.eblib.com/choice/publicfullrecord.aspx?p=310707.

[9] Jeff. Chang, Who we be : the colorization of America, First edition. (New York: St. Martin’s Press, 2014), http://www.netread.com/jcusers2/bk1388/290/9780312571290/image/lgcover.9780312571290.jpg.

[10] Reed fala sobre processos de difusão e defusão, embora não especificamente aplicada à literatura infantil, em: Reed A arte do protesto: cultura e ativismo do movimento de direitos civis para as ruas de Seattle.

[11] Reed.

[12] https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Nobel_laureates_in_Literature

[13] https://busca.saraiva.com.br/q/colecao-toy-story

[14] https://www.amazon.com.br/inven%C3%A7%C3%A3o-mundo-pelo-Deus-curumim/dp/8573263997?tag=goog0ef-20&smid=A1ZZFT5FULY4LN&ascsubtag=go_726685122_54292137521_242594579893_aud-594374058437:pla-399736342977_c_

[15] https://busca.saraiva.com.br/q/livros-barbie

[16] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pollyanna

[17] Arlene. Goldbard and Don. Adams, New creative community : the art of cultural development, 1 online resource (268 pages) : illustrations. vols., Book collections on Project MUSE. (Oakland, CA: New Village Press, 2006), http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&scope=site&db=nlebk&db=nlabk&AN=1713338.

[18] https://en.wikipedia.org/wiki/Ways_of_Seeing

[19] https://www.saraiva.com.br/aprendi-a-sergentil-9724160.html

[20] Reed, The art of protest : culture and activism from the civil rights movement to the streets of Seattle.

[21] Chang, Who we be : the colorization of America.

[22] Dávila, Culture works : space, value, and mobility across the neoliberal Americas.

[23] Chang, Who we be : the colorization of America.

[24] Grace Lee. Boggs, Scott. Kurashige, and Danny. Glover, The next American revolution : sustainable activism for the twenty-first century, 2nd ed., 1 online resource (257 pages) vols. (Berkeley: University of California Press, 2012), http://public.eblib.com/choice/publicfullrecord.aspx?p=919284.

[25] Goldbard and Adams, New creative community : the art of cultural development.

[26] Goldbard e Adams.

[27] https://www.amazon.com.br/Saci-Reciclagem-Do-Lixo/dp/8516071820?tag=goog0ef-20&smid=A2VWMP4GK1G2B&ascsubtag=go_1494986073_58431735035_285514469186_aud-594374058437:pla-486476392693_c_

[28] https://www.youtube.com/watch?v=qoHnKqRc55k

[29] Reed, The art of protest : culture and activism from the civil rights movement to the streets of Seattle.

[30] Reed.

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