Um olhar para processos

Estamos muito acostumados a refletir sobre “o que” fazemos. Por exemplo, discutimos muito na educação sobre quais as metodologias que utilizamos e as atividades que realizamos com os educadores, numa parada pedagógica, ou com os educandos, nos diversos espaços de aprendizagem que possuímos. Em contrapartida, não discutimos com a mesma frequência o “como” fazemos o que fazemos, ou seja, qual a nossa maneira de vivenciar e se apropriar dessas metodologias e atividades.

 

Fazendo uma analogia, podemos considerar que o “o que” é o instrumento (como um violão), a arma (como uma espada) ou o sistema operacional (do computador, por exemplo). Digamos que somos um violonista, um espadachim, ou um profissional de tecnologia da informação. O “como” está em nossa habilidade e maestria para tocar o violão, manejar a espada ou navegar no sistema operacional. O “como” vai depender da experiência acumulada de cada pessoa para usar esses recursos.

 

É importante entender que o “como” não está relacionado ao quanto a pessoa conhece teoricamente sobre um determinado assunto. A leitura completa de um manual para aprender a tocar violão, usar a espada ou navegar no computador não garante que a pessoa, no momento seguinte, tenha adquirido a maestria nesses contextos. Mesmo que sejamos ótimos autodidatas e consigamos dominar a teoria (o “o que”) em poucas semanas, será necessário, a depender da pessoa, meses e até anos de dedicado esforço para se alcançar algum nível de competência no “como”.

 

“Arte é tudo aquilo que não se aprende nos manuais”, diz um ditado. A arte é o que separa um excelente tocador de violão (que eventualmente nunca leu nenhuma teoria a respeito) e um tocador mediano (que pode dominar um grande conhecimento teórico a respeito do tema).  Ela é adquirida pelo suor e pelo esforço repetido do dia a dia, em que percebemos, por exemplo, que se mudarmos um pouco a posição da mão, se tocarmos com mais leveza ou se relaxarmos mais os ombros, o som do violão sairá mais fácil e suave. Que se mudarmos nossa intenção interna da raiva para o amor, se respirarmos fundo e ficarmos presente, o giro da espada sairá mais focado e assertivo. Que se fizermos um certo caminho de atalhos no computador, que não o que estava no manual, chegaremos mais rápido no programa que queremos abrir. E por aí vai.

 

E quando assumimos que o “como” é tão importante quanto o “o que”, começamos a pensar não somente em quais sãos as metodologias mais eficientes para alcançarmos o que queremos, mas também em quais são os processos mais eficientes para incorporarmos e nos desenvolvermos nessas metodologias. Quais os processos que farão com que o violonista cresça como pessoa capaz de tocar o violão, que o espadachim cresça como pessoa capaz de operar a espada etc? A isto chamamos “olhar de processo”, algo que tem crescido tanto entre pessoas e grupos que pensam inovações no campo do desenvolvimento humano, organizacional e social, que fez com que surgisse a máxima de que “o processo é o resultado”.

 

O que isto quer dizer?

 

Vamos imaginar um cenário, em que dois educadores têm uma meta: diminuir o número de conflitos na escola. Para isso, eles foram treinados numa metodologia: por exemplo, a Comunicação Não Violenta, de cujo passo a passo eles se apropriaram. Mas, no caso do primeiro educador, ao realizar o trabalho, mesmo seguindo todos os passos previstos pela metodologia, ele sente que os conflitos não diminuíram, ou que ele não está conseguindo resolver tantos conflitos quanto gostaria, ou ainda que o clima na escola não está melhorando, mesmo com a sua atuação. Ao mesmo tempo, numa outra escola, o outro educador, com o mesmo objetivo e a mesma metodologia nas mãos, está alcançando resultados excelentes.

 

Digamos que, certo dia, os dois sentam para conversar e trocar sobre sua prática. O primeiro se queixa dos resultados insatisfatórios que está alcançando, os quais não consegue compreender, uma vez que está seguindo à risca o que aprendeu. O segundo lhe pede que conte um pouco de como está utilizando a metodologia, solicitando que conte a história de um momento em que tentou fazer uma mediação de conflito.

 

Ouvindo a história, vai se revelando que, embora os passos da CNV estivessem sendo seguidos à risca, o educador os estava aplicando com dureza, sem que as palavras de apreciação e a expressão de sentimentos viessem de um lugar de verdadeiro contato com os próprios sentimentos, mas a partir de uma conexão meramente racional e superficial com seu próprio corpo e suas necessidades; que ele estava enrijecido no passo a passo, inclusive dando “bronca” nas pessoas que não seguiam os passos corretamente, fazendo-as sentirem que a CNV era uma obrigação e algo chato; que a metodologia estava sendo imposta às pessoas, em vez de haver um trabalho gradativo de convidar as pessoas a perceber, no seu próprio ritmo, a importância deste tipo de comunicação; que ele reclamava quando as pessoas não respondiam positivamente ao passo a passo, transferindo o resultado negativo do processo para as pessoas, fazendo-as se sentirem mal por não estarem conseguindo se comunicar de maneira não-violenta.

 

Em resumo, o educador estava usando um “o que” não violento (a metodologia da CNV) com um “como” violento, que não tem a ver com a metodologia em si, mas com a habilidade da pessoa em operá-la. Este “como” é o processo. Como eu faço o que eu faço? Como eu opero uma metodologia como a CNV? Se meu processo é duro, rígido, superficial, e pouco auto-responsável, meus resultados serão incipientes, não importa quão eficiente for a minha metodologia, e quão nobres forem os resultados que eu estou tentando alcançar.

 

Digamos que este educador, agora, pede ao seu colega, que está alcançando resultados extraordinários, que lhe conte o que tem feito. Este lhe relata histórias em que ele mesmo buscou praticar a CNV consigo, aprofundando em suas feridas e seus sentimentos; em que exercitou a empatia para saber quando era o momento certo de usar a ferramenta, para que as pessoas não se sentissem obrigadas a seguir o passo a passo; em que ultrapassou preconceitos internos e suas questões com tocar e ser tocado fisicamente, buscando expressar e verdadeiramente sentir amor pelo outro, ao sorrir e abraçar; relata que intensificou processos pessoais de autoconhecimento, seja pela terapia, pela meditação ou qualquer outro recurso, para perceber mais quando ele está usando o CNV de forma positiva e quando está usando de forma violenta; explica como está buscando olhar para suas próprias falhas quando o outro não responde como esperado. E por aí vai.

 

O educador, neste caso, está usando um “o que” não violento com um “como” igualmente não violento. Neste caso, a efetividade será máxima. O processo é tão importante que poderíamos até dizer que mesmo que este educador não tivesse qualquer conhecimento de CNV, se ele estivesse fazendo o que estivesse fazendo de uma maneira (com um “como”) amoroso, flexível, receptivo, conectado, profundo etc, que ainda assim ele obteria ótimos resultados.

 

Embora, certamente, “o que” e “como” tenham ambos a sua importância. Um péssimo espadachim com uma ótima espada pode fazer estragos. Um ótimo espadachim com uma péssima espada pode fazer milagres e tirar leite de pedra. Mas um ótimo espadachim com uma ótima espada pode atingir resultados extremamente poderosos – para si e para os outros.

 

Portanto, o olhar de processos implica questionar-se sobre a maneira como fazemos as coisas – qualquer coisa. Por exemplo, como damos limites a nossos filhos e educandos. Praticamente qualquer educador concorda que dar limites é importante. Dentro disto, há os que consideram que uma certa metodologia é mais efetiva que outra para alcançar este resultado. E, uma vez escolhida a metodologia, a maneira como cada um a opera é o que, de fato, vai gerar o resultado esperado – ou não.

 

Cultivar o olhar de processos não é simples, contudo, por diversas razões:

 

1)      Ele considera a subjetividade como importante: quem eu sou, minha história, meus padrões emocionais e minha experiência são inevitavelmente questionados como parte essencial dos resultados que atinjo. Isso, obviamente, mexe com o medo que todos temos de olhar para nossas falhas, de receber feedbacks e de eventualmente perceber que não podemos nos esconder atrás de nossos certificados ou de nosso nível de conhecimento sobre um assunto. Quando questionamos o processo, muitas vezes nos damos conta de que não precisamos aprender novos conhecimentos: necessitamos praticar o que já sabemos ou, o que pode ser ainda mais desafiador, temos de fazer mudanças (às vezes grandes) em nosso senso de identidade, transformando a maneira como pensamos, sentimos, nos relacionamos e até mesmo mexendo em histórias pessoais (que, aparentemente, não têm nada a ver com nosso trabalho) e que determinam nossas crenças sobre as pessoas, o mundo e a vida, bem como a maneira como fazemos o que fazemos.

 

2)      Ele nos leva para observar e perceber o sutil e o intangível, o que é cada vez mais desafiador numa sociedade que privilegia o concreto e o tangível. A tangibilidade tem a ver com o “gabarito” ou com a “formação” (que vem da palavra “forma”). Ou seja, tudo que precisamos fazer é ver se o que fizemos corresponde a um resultado já esperado (o gabarito) ou a algo que já foi pensado e que já é conhecido (a forma). O tangível é válido e importante como um “norteador”, assim como um mapa, para termos alguma ideia de para onde estamos navegando. Entretanto, como o mapa jamais corresponde 100% ao território real, quando os dados reais não correspondem ao gabarito ou à forma, ou nos sentimos inseguros e sem saber o que fazer, ou violentamos o processo para que ele se transforme artificialmente no resultado esperado – por exemplo, obrigamos a criança a pedir desculpas para o colega, independente dela estar verdadeiramente vendo sentido naquilo. Sentimos um breve alívio por ver o resultado visível e tangível do que esperávamos, mas a repetição da mesma situação (o menino que volta a brigar, às vezes com ainda mais violência, ou que passa a esconder mais o que faz) comprova que o processo utilizado não trouxe, de fato, o resultado esperado – ao menos não em longo prazo, de forma sustentável. Como o intangível não é padronizado e repetitivo, pois cada pessoa tem uma história, uma identidade, e terá um jeito único de fazer as coisas, sentimos que não temos tempo ou paciência de observar os detalhes e as sutilezas de cada pessoa e sua maneira de fazer o que faz. Por isso, “chapamos” nosso olhar para poupar energia – basta esperar que todos ajam de acordo com o gabarito. Observar e dar nome para o intangível, ou seja, diferenciar, de forma racional, qual é o jeito da pessoa “A” para operar a CNV, em relação à pessoa “B”, implica muita escuta, receptividade, capacidade de pensamento abstrato, de pensar o que não foi ainda pensado, entre outros, e atualmente não só temos pouco costume de fazer isso mas, principalmente, não temos muitos espaços onde essa habilidade pode ser cultivada.

 

3)      Ele coloca o corpo e o aqui e agora como o centro do processo que nos levará a atingir os resultados que queremos. Mesmo que eu, como professor de violão experiente, já tenha várias dicas de processo para dar para meu aluno (como, por exemplo, um detalhe de posicionamento de mão que pode ajuda-lo a avançar mais rápido), o aluno terá de criar suas próprias conexões neurais, exercitando em seu corpo as dicas que dou como professor, experimentando outras que sejam suas, e avançando um pouco mais a cada momento. O processo acontece no corpo, e este não pode ser acelerado, tal qual uma planta não pode crescer de um dia para o outro. E mesmo que tentemos acelerar artificialmente esse processo (tal qual uma planta cresce mais rápido a base de fertilizantes e agrotóxicos), o resultado final será um aluno pouco apropriado do processo, pouco empoderado e pouco seguro para fazer o que faz. A perspectiva do corpo como centro do processo traz, novamente, o desafio da subjetividade, numa sociedade que busca ignorar o corpo e privilegiar os processos puramente mentais. Mexer no corpo, como já dito, é mexer nas emoções, nas histórias do passado, e isto é algo que não desejamos fazer conosco muitas vezes – no máximo, queremos fazer com o outro. E focar no aqui e agora é admitir que o “o processo é o resultado”, ou seja, que em vez de apostar todas as nossas fichas no resultado que vimos ali na frente (por exemplo, o aluno tocando belamente uma música), estamos apostando todas as fichas nos avanços que podem ser alcançados neste exato momento – e, portanto, mesmo que aos olhos do resultado (do “o que”) avancemos pouco, acreditamos na importância de garantir que aquele exato momento seja o mais inesquecível possível, cuidando do processo (o “como”). Só que isto, mexe com a nossa ansiedade, que pode ser enraizada em expectativas unicamente nossas ou alimentada pelas expectativas do nosso trabalho, da sociedade etc, que exigem que mostremos resultados tangíveis para que sejamos reconhecidos pelo que fazemos.

 

Com todos esses desafios à nossa frente, fica evidente que aprender a cultivar um olhar de processos só fará sentido se realmente nos apropriarmos, em nosso corpo, dos benefícios profundos que esse olhar traz. Quando temos algumas experiências de viver um processo poderoso e sustentável e, em longo prazo, percebermos o resultado em nós, começamos a perder o medo de “soltar” os velhos padrões e nos habituar a estar sempre nos renovando e refinando nossos processos. Pois, diferente do “o que”, que pode ser o mesmo para sempre (eu posso tocar violão a vida inteira), o “como” evolui a cada instante (eu posso aprofundar minha maestria no instrumento e aprender novas formas de usá-lo até meu último suspiro).

 

Também é importante entender que o olhar de processo, justamente por não se basear em gabaritos e formas, não é um olhar julgador. Em teoria, ninguém deveria ser “condenado” por conduzir um “mau” processo. Não existem maus processos. Existe o melhor processo que conseguimos sustentar, considerando nossa história e o que vivemos até agora. Nós sempre estamos utilizando a melhor estratégia que temos, dentro das melhores crenças que conseguimos cultivar até o momento, para atender as necessidades que possuímos.

 

Por isso, se observamos em nós pontos a serem melhorados (ou até totalmente modificados) em nossa maneira de fazer o que fazemos, em vez de nos fechar, pelo medo das mudanças que teremos de fazer, podemos olhar para isso com compaixão. Inclusive porque mesmo o ato de mudar é um “o que”, que pode ser vivido por meio de diversos “comos”. Podemos incorporar e nos mover para o olhar de processos nos criticando e nos julgando, exigindo de nós mesmo que desenvolvamos esta habilidade muito rápido, ou nos acolhendo com empatia e nos dando o tempo parar errar, aprender com o erro, observar quais são nossos velhos processos e construir, com calma e carinho, os novos processos que queremos sustentar. Só isto, por si só, já trará  mudanças poderosas em nossas vidas.

 

E, se sentirmos que já sustentamos os processos que gostaríamos, que já fazemos o que fazemos como acreditamos, que possamos então nos unir, cada vez mais, em redes de troca onde possamos aprender um com o outro, para que alcancemos níveis de maestria cada vez maiores na habilidade de conduzir processos poderosos que geram resultados sustentáveis. E quem sabe, assim, consigamos construir uma educação que reconhece e enxergue quem as pessoas são agora, e não o que elas deveriam ser, e que se sente empoderada para implementar, de fato, as metodologias nas quais acreditamos.