A aventura de se relacionar

Somos capazes de tolerar a dor e o desespero? O discurso nas ruas e nas mídias diz que não: por isso precisamos nos anestesiar, comendo, bebendo, fumando, comprando, enfim, aliviando o “sofrimento do dia a dia”. Com humor, estampamos em camisas: se não fumo, não bebo e não trepo, então não vivo. A vida se iguala ao prazer de anestesiar uma existência sem significado, e como não é possível tolerar o contato com essa dura realidade nem um segundo, temos que nos anestesiar com cada vez mais intensidade e mais rápido, sem dar uma chance sequer para a consciência e a verdade.
Eu fui uma criança viciada em televisão, um adolescente viciado em revistas que incitavam o sexo e um jovem fumante e beberrão. Depois, larguei tudo isso e fui viver a vida como ela é, com cada vez menos anestesias, e querem saber a verdade da minha experiência? Nós somos capazes de tolerar a dor e o desespero. No começo, parece que não, que o mundo vai acabar. Como diz a literatura que trata das situações de “despertar espiritual”, é a tal “morte do ego”, a perda total da identidade construída até então, e que pode se manifestar com sensações de morte ou de loucura iminente. Passada essa fase (para quem a passa), vem a verdade: sofrimento e anestesia são pura ilusão.
Dor e desespero são palavras grandes apenas quando a verdadeira base da vida, que é amor e felicidade, está tão fora do foco que detalhes como esses se tornam a única possibilidade de concentração de nossa mente. Um punhado de sujeira dentro de uma xícara de água faz uma grande diferença – dentro de um oceano, muito pouca. Mas aprendemos que a sujeira é a principal e maior realidade, e que o gosto da água pura é experiência rara e para poucos. Mentira.
Mas acreditamos nisso, e por considerar intolerável a possibilidade de entrar em contato com a podeira, ou seja, de acessar os sentimentos densos da vida, nós nos impedimos de nos relacionar com profundidade – com o outro e conosco. Não há possibilidade de aventura se cada mal-estar é interpretado como um sinal de que devemos parar e recomeçar tudo de novo. Se nossa vida fosse um vídeo game, seria como mudar de jogo eternamente, sem nunca passar da primeira fase por não conseguir sequer encarar frente a frente o primeiro vilão – que é em geral o mais fraco, mas que aos nossos olhos iludidos parece o maior e mais fatal de todos. Que aventura é essa, que não passa do nível básico?
E nem estou dizendo que precisamos mergulhar no lado denso da vida. Não. Isso é simplesmente o reverso da moeda – em vez de fugir, perder tempo lutando. O que digo é que podemos juntos cultivar o oceando de amor infinito que faz o punhado de poeira parecer absolutamente insignificante para nossa consciência mais profunda, mesmo quando no nível superficial de nossa experiência, ele parecer enormemente gigante. O que digo é que podemos encontrar tamanho entusiasmo na aventura de se relacionar conosco, com o outro e com o mundo, que os grandes perigos se tornam estimulantes desafios. Eu sou o herói de uma história deliciosamente perigosa.
Para não falar sobre isso sozinho, faço o convite para assistirmos juntos o vídeo da pesquisadora Brene Brown no TED, com seu discurso sobre o poder da vulnerabilidade, e em seguida chocar-se com o poder anestesiante e emburrecedor da publicidade e do consumo direcionado para crianças, assistindo o documentário “Criança, a Alma do Negócio”, da diretora Estela Renner. E aí podemos conversar mais – me escreva!