A gentil hipocrisia

Onde está a verdade? Na organização estética da experiência de amor e afeição ou na experiência real, visceral, de ser acolhido e amado?
Tive a sorte de receber um poderoso ensinamento para lidar com essas perguntas nessa semana, durante um dia de trabalho. Facilito um projeto junto a jovens que cumpriram, em algum momento, medidas sócio-educativas. Um projeto lindo, fundamentado em se relacionar com esses jovens a partir de um lugar de amor sincero, de transparência, de co-criação e de busca de um significado maior para a vida pessoal e profissional.
Dentro desta perspectiva, nesta semana convidei um querido amigo que trabalha com sustentabilidade para fazermos um passeio por alguns pontos de São Paulo que são representativos de certos aspectos da responsabilidade social. Um desses pontos era o prédio de uma loja chique de São Paulo, construída com diversos recursos ecológicos e sustentáveis.
Quando chegamos lá – eu, meu amigo, oito jovens e outras pessoas que estavam como co-facilitadoras do processo – ficamos encantados com a beleza e harmonia do lugar. Além das plantas que brotavam de todas as paredes, como se o prédio respirasse, em alguns cantos repetiam-se dizeres inspiradores como “Gentileza gera gentileza” e “Amor gera amor”. Para mim, que sou militante de um modo de vida e de relação mais amoroso, era tudo sinérgico e inspirador.
Num pátio central, sentamos todos num banco para ouvir as explicações do meu amigo sobre as soluções ecológicas ali presentes. Mas meu amigo mal começou a falar, e uma mulher (pelo que entendi, gerente da loja) apareceu e, sem pedir licença, ordenou num tom que me soou bastante autoritário e preconceituoso, que saíssemos da loja, pois nós não tínhamos autorização para estar lá.
Realmente, por um lado, não havíamos avisado que iríamos lá, e éramos um grupo de 16 pessoas conversando no pátio de uma loja. Por outro, nós estávamos ali para apreciar o local, de forma tranquila e amigável, e meu amigo já havia ido outras vezes lá sem avisar, sem que houvesse qualquer problema. Tentei explicar educadamente para a tal pessoal que nós estávamos ali para apreciar o prédio, que éramos de um projeto social e que estávamos realizando uma experiência educativa.
Isso não pareceu ser o suficiente para essa mulher, que apressadamente disse que achava “muito legal” ser um projeto social, mas que nós tínhamos que sair dali assim mesmo, e que eram ordens “acima dela” (aliás, como eu acho irritante esse tipo de argumento, criado para imobilizar cruelmente qualquer possibilidade de ação coletiva). E, o mais chocante, quando dissemos, ainda com educação, que então sairíamos, ela apontou em silêncio a porta da rua, como quem diz “a porta da rua é a serventia da casa”. Senti-me esculachado como um cachorro. E o pior, embora não posso afirmar as razões dessa pessoa, a sensação que me deu foi a de que estávamos sendo expulsos pelo mero pressuposto de que nós, estereotipados como pobres ou manos ou alternativos ou perigosos ou inconvenientes, não pertencíamos àquele lugar de sustentabilidade de elite, voltado para o consumo de roupas e de um conceito de sustentabilidade cool, e não para o amor e a gentileza genuínos.
Fala sério!
Saí desse lugar profundamente triste e incomodado, mas procurei respirar meus sentimentos para retirar tudo que havia de mesquinho na minha indignação e potencializar tudo o que fosse puro e transformador. Talvez tenha conseguido isso, ou talvez apenas em partes – você, que lê esse texto, talvez possa me ajudar a perceber! Mas, de fato, depois fui me acalmando a ponto de empatizar com essa moça, que talvez fosse nova no emprego, que talvez estivesse assustada por nunca ter tido a oportunidade de dialogar com histórias diferentes da sua. Acontece.
Seguimos adiante e fomos visitar uma cooperativa de catadores de lixo. Ambiente bem diferente da linda loja sustentável, esse é um lugar frio, escuro, embaixo de um viaduto e, bem… cheio de lixo. Cheio daquilo que eu não quero enxergar no ciclo do processo produtivo – porque é mais fácil, para mim, enxergar só a pequena parte em que eu compro o produto, o consumo e o jogo numa lata.
Entramos sem nos anunciar, sem dizer nada, e ninguém pareceu incomodado com nossa presença. Passeamos, olhamos os diferentes tipos de lixo, como eles são tratados, e alguns jovens fizeram perguntas aos catadores presentes. Depois, uma das líderes do local (que, devo admitir, já estava avisada de que iríamos lá) tomou um tempo precioso do seu tempo para explicar todo o esquema da cooperativa e responder todo tipo de perguntas. Os jovens estavam visivelmente fascinados. O clima de amor e empatia entre o grupo e de cada um pela situação daquela brava gente guerreira era marcante. Dava para sentir e enxergar como todos estavam tocados por aquele momento e verdadeiramente refletindo sobre o que tudo aquilo tinha a ver com eles. Dois sentimentos surgiram em mim (embora só agora tenho consciência a ponto de nomeá-los).
Amor e gentileza.
E desse ponto, surgiu a vontade de compartilhar a admiração por esse grupo de jovens em claro e sincero processo de transformação, por essa líder catadora tão disponível e pelo amor que surge da empatia e do desejo de servir genuínos. E surgiu, também, a vontade de compartilhar a indignação necessária para termos coragem de agir para criar espaços onde a estética esteja acompanhada daquilo que a preenche de verdade e significado. E disso tudo, veio a pergunta:
Onde está a verdade? Na organização estética da experiência de amor e afeição ou na experiência real, visceral, de ser acolhido e amado?
Qual a sua resposta?