Ser um homem que monumenta a vida!

Após a participação num dos encontros do Círculo de Homens que sustento com alguns amigos, escrevi o texto “Velar o Fogo do Masculino Sagrado”, que expressa as reflexões que surgiram desse encontro, sobre como me tornar digno do Masculino Sagrado. Essa reflexão, depois desdobrou-se no que significa para mim Ser Digno.

 

Algum tempo depois, li este poema de Manoel de Barros, que começou a me dar algumas pistas sobre esse novo tema, e abriu um campo profundo de reflexão e percepção:

 

“Venho de nobres que empobreceram

 

Restou por fortuna a soberbia.

 

Com esta doença de grandezas:

 

Hei de monumentar os insetos!

 

(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os

 

pés de seus discípulos.

 

São Francisco monumentou as aves.

 

Vieira, os peixes.

 

Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.

 

Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)

 

Com esta mania de grandeza:

 

Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas

 

de orvalho.”

 

Fui arrebatado pela dignidade dessa postura – a de “monumentar” o pequeno, o insignificante, o marginal, o esquecido, o simples, o sutil – que é oposta à da cultura que valoriza que todos sejam O Maior e O Melhor. E esta é, certamente, uma maldição que nós, homens, conhecemos há muitos séculos, e que alimentamos diligentemente, em nossas famílias, na escola, no trabalho e na cultura de massa. Dignidade, em nossa cultura, significa, muitas vezes, mostrar para a sociedade que somos cada vez maiores e melhores.

 

Em nosso caso, homens, crescemos achando que temos de ter o melhor e o maior carro; ter o maior “pau” e ser o melhor de cama; ser o que ganha mais em nossa profissão e que é o mais reconhecido em sua área; que tem dinheiro suficiente para comprar a maior e a melhor casa – em outras palavras, ser um grande provedor; precisamos ser o que “comeu” mais mulheres, e o mais forte, gostoso e atraente; precisamos ser o melhor no futebol ou em qualquer outro esporte. E por aí vai.

 

Nem precisa dizer que, quando entramos nessa narrativa de dignidade, em vez de monumentar, desprezamos as coisas pequenas e simples como insignificantes – e ainda mais as que fogem do padrão desse mito do maior e melhor. E é aí que assumimos a sombra de um masculino violento, autocentrado, engolidor e atropelador das delicadezas e das fragilidades – essas mesmas delicadezas e fragilidades que, muitas vezes, são tão caras ao feminino. Pois assumi-las como nossas seria correr o risco de perder a nossa “dignidade”.

 

E se, em épocas anteriores a esta, todo esse discurso do “bonito, rico e viril” já era pesado, imagine agora, que temos de também ser bons moços, gentis com as mulheres, engajados em causas sociais, espiritualizados, e mais um bocado de coisa que nos qualifica como “atraente e de bom coração”. Para sermos dignos, não podemos ser nada menos que o doce e gentil Clark Kent e o corajoso protetor da humanidade Super Homem.

 

Mas quando li o poema de Manoel de Barros, entendi um aspecto muito importante do que é dignidade para mim, e para meu masculino: trazer grandeza para todos aspectos humanos – incluindo Ser Homem. Cada homem, com seu propósito, pode dignificar uma parte dessa experiência humana, e torna-la bela, valorizada, monumental. Não podemos, com nosso Masculino Idealizado, esmagar nem a sombra do velho mito – o feio, o pobre e o frágil – nem a do novo – o duro e o materialista. E tudo mais que não se encaixa nisso. Todo o espectro do Ser Homem precisa ser monumentado por alguém, seja porque é algo belo, e que precisa ser visto, seja porque é algo que gera sofrimento, mas que, se existe, existe devido a uma história, que precisa ser monumentada em sua dignidade.

 

Tenho em meu coração dois exemplos simples que, para mim, retratam essa capacidade de monumentar o que é belo, mas não é visto, e o que gera sofrimento, mas tem uma história. O primeiro é o filme brasileiro “Hoje Quero Voltar Sozinho”, que conta a história de amor entre dois rapazes adolescentes – um deles cego. Sem grandes dramas, e com muita poesia, a história traz grandeza e potência para a cegueira e o homossexualismo – dois aspectos que o mito dominante do masculino não quer monumentar. O outro é o livro “For Your Own Good – Hidden Cruelty in Child-Rearing and the Roots of Violence”, de Alice Miller (Para Seu Próprio Bem – Crueldade Velada na Criação de Crianças e as Raízes da Violência). Nesse fantástico livro, a psicanalista suíça Alice Miller descreve as bases do que chama de “pedagogia venenosa” e analista a infância de 3 controversas personagens da história alemã – uma delas, Hitler.

 

Ao narrar, a partir de dados históricos, a infância de Hitler, sem tentar nos convencer de que sua infância extremamente violenta “justifica” o que ele fez, mas apenas mostrando a contribuição que ela deu para seu caráter, ela monumenta Hitler, fazendo-o não só humano, mas parte do espectro do que é Ser Homem. Monumentar, aqui, não é vangloriar, concordar, enaltecer, mas apenas dizer: isso também tem importância. Por mais que Hitler tenha sido quem foi, sua infância sofrida – e ele, em si – têm importância.

 

Quando nós, como homens, monumentamos a vida, nós lhe damos importância, em todos os seus aspectos. Se é algo que é belo, mas estava esquecido, tiramos o pó, tornamos reluzente, trazemos para o palco, e celebramos, como no filme que citei. Se é algo revoltante, e que estava sendo demonizado de forma simplista e maniqueísta, corajosamente adentramos suas entranhas, conhecemos a sua história, choramos a dor que levou o belo a se tornar grotesco, e lhe devolvemos a humanidade, para que aquilo não se repita. E não pela repressão, mas pelo entendimento empático e profundo, e pelo desejo de servir a vida – como no livro mencionado.

 

Desde muito tempo nossos contos de fada e, mais recentemente, vários filmes e novelas, repetem incessantemente: homem, seja o príncipe, o rei, o líder! Se você nasceu no estábulo, certamente é por engano. No seu nascimento, alguém seguramente trocou os bebês, ou por algum motivo maior você foi mandado para longe, para um dia voltar e reassumir o seu lugar. Mas seu destino é ser rei, pois não é digno do homem ser apenas o rapaz do estábulo. Entretanto, o homem que monumenta a vida diz: sim, é digno ser o rapaz do estábulo. Ele também conta algo de belo sobre o Masculino Sagrado. Se os arquétipos do rei, do príncipe e do amante são tão desejados, não é porque eles sejam necessariamente superiores, mas simplesmente porque são eles que tem sido monumentados, de forma monopolizadora, durante séculos. Esses arquétipos são muito importantes, com certeza (pessoalmente, eu os adoro), mas não podem ser os únicos.

 

Quem de nós sentirá o chamado natural para monumentar o que o mito masculino que não funciona mais quer desprezar? Quem monumentará o rapaz que cheira a flor na calçada? Os amigos que se abraçam de forma doce e singelo? O que diz “eu te amo” olhando nos olhos do outro? Quem monumentará o mendigo? O gay? O travesti? O nerd? Ou, indo além dessas categorias, as diferentes e originais formas de ser homem? Quem monumentará as rodas de conversa profunda entre homens, que falam de sentimentos e vulnerabilidade? Quem monumentará o pau pequeno? A mulher que é taxada de velha, ou gorda, ou feia, ou deficiente, e que é igualmente uma representante legítima do Feminino Sagrado, tanto quanto as deusas gostosas que adoramos monumentar? Quem monumentará o homem que é amente dessas mulheres? Quem monumentará o carro usado e antigo? A casa simples? O faxineiro? O emprego desglamourizado e honesto? O chão de fábrica? O sonho de viver algo que não pertença a um destino masculino já pré-determinado, de futebol, carro, mulher e cerveja? Quem de nós sentirá o chamado para tornar grande algo pequeno, algo humano, mas que é nosso por direito?

 

Também vale dizer que o novo mito, do homem doce, emocionado e espiritualizado, também pode ser usado contra a monumentação do espectro completo de Ser Homem. Quando nos juntamos a um grupo espiritual e acreditamos que bons mesmos são os que falam de forma suave, não bebem, andam de branco, são vegetarianos, comem orgânicos, choram e abraçam todo mundo, deixamos de monumentar tudo aquilo que interpretamos como duro, forte, ríspido. Renegamos esses aspectos como antigos, ultrapassados ou ruins, mas eles também fazem parte de Ser Homem. Não à toa, mentores do masculino como Robert Bly, relatam sua preocupação ao ver círculos de homens desvitalizados, que falam de amor, porém mal conseguem segurar uma espada para expressar sua força masculina. Também é necessário monumentar nossa virilidade, mesmo que ela tenha se desviado em comportamentos machistas e agressivos. Não para validar esses desvios, mas para encontrar a história atrás desses comportamentos, onde mora algo digno de ser notado como importante.

 

Quando um homem Nova Era olha nos olhos de um clássico machão, com toda a sua aparente dureza, insensibilidade e voracidade sexual, entende a sua história e reconhece o que ele está guardando – ainda que mal guardado – e celebra esse seu esforço, uma cura se dá no mundo, e o que era grotesco se torna poesia. E talvez um dia essa cura faça com que essa essência mal guardada seja melhor guardada, na forma de rituais belos e profundos – e não de machismo – assim como hoje as guardiãs do Feminino Sagrado encontram poesia no ciclo menstrual e o guardam com carinho, transmutando o fato de que esse mesmo ciclo antes também era tido como grotesco. O mesmo se dá quando um homem dentro do antigo mito masculino celebra dois homens que se abraçam como amigos, ou que se beijam como amantes, ou que dançam com mulheres numa roda de cura.

 

Logo, a pergunta é: qual é o nosso papel na monumentação do Masculino Sagrado? Qual é esse pedaço que nos cabe guardar como também importante, tanto quanto todos os outros? Essa é justamente a pergunta que, agora, tem rondado minha jornada de assumir esse Masculino: qual é a minha parte nessa história, e que me dignifica como homem, pois só aquele que consegue enxergar o invisível é que verdadeiramente abriu os olhos?

 

Acredito que essa resposta só será encontrada no meu propósito de vida – no meu destino. Sendo eu, e vivendo a minha trilha – e não a trilha do sucesso programado – naturalmente o que devo monumentar se revelará. Sei disso porque já experimentei um pouco da água dessa fonte, quando, aos 21 anos, escrevi um livro-reportagem sobre pessoas que nasceram, como eu, com fissura labiopalatal. No encontro com essas pessoas, algumas que lidavam melhor e outras pior que eu com o fato de terem cicatriz no rosto, ou serem fanhos, ou terem o nariz torto, descobrimos muita, muita dignidade. Foi durante esse processo que comecei a namorar minha esposa, com quem já estou há 12 anos, e tive coragem de entrar num coral, para fazer algo que um fanho não-monumentado jamais faria em público: cantar. E, hoje, eu me sinto grato pela honra de poder ter monumentado essa história, e de outras pessoas como eu.

 

Tenho certeza que no coração de cada homem mora uma “pobre coisa do chão mijada de orvalho”, pedindo para virar poesia.

 

Qual é a sua?

 

Deixo, por fim, um poema de Bertrold Bretch, que questiona, de forma muito digna, este mito do Maior e Melhor, e monumenta os esquecidos:

 

Perguntas de um Operário Letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas