O que há de errado com o “Alimento para Todos”

Recentemente, compartilhei a notícia de lançamento do programa “Alimento para Todos”, lançado pela atual gestão da prefeitura de São Paulo, junto com uma mensagem sarcástica, em que critico tanto o Programa em si quanto a foto do lançamento, em que predominam pessoas brancas. A publicação gerou uma resposta incomodada de um amigo, afirmando que esse tipo de projeto “é tendência e super necessário”, questionando se “para sancionar um projeto de lei deve haver cota racial também para quem participa do ato”, e sugerindo que minha crítica teria sido feita “sem analisar o que é, apenas por ser adversário”. Uma outra amiga também questionou: “qual o problema em ser branco? Isso não é uma forma reacionária?”.

 

Os questionamentos me fizeram refletir sobre o impacto do que fiz: compartilhar uma crítica sem contextualizá-la. E me provocaram a escrever esse texto. E se reproduzo aqui os comentários, não é para expor ou responder a quem os fez, mas porque eles foram o ponto inicial que me levou a clarear o que estava por trás do sarcasmo da minha publicação. Agradeço a provocação desses amigos, pois é muitas vezes no confronto de ideias que expandimos, pois ou mudamos de opinião, ou tornamos mais clara nossa própria posição.

 

O que há de errado, então, nesse Programa?

 

Estou certo de que outras pessoas trariam outros argumentos, a partir de suas expertises e experiências. Do lugar de onde enxergo, os problemas são:

 

  • O contexto onde se insere o reaproveitamento de alimentos:

Não dá para descolar um ato da narrativa maior onde ela se insere. O ato isolado, de reaproveitar alimentos, é muito louvável. Em minha época de repórter, escrevi uma grande reportagem sobre o assunto, pesquisando em diversas cidades, incluindo sertão sergipano e cidade de São Paulo, projetos alternativos de Segurança Nutricional. Baseados na premissa do reaproveitamento, havia iniciativas incríveis de utilização da Palma (um tipo de cactos) no sertão de Sergipe, e uma série de cartilhas do SESC que ensinavam, por exemplo, a fazer pratos bem gostosos com casca de banana.

 

Apesar dos projetos me chamarem a atenção, ouvi com muita frequência como era difícil a população a quem eles eram destinados (invariavelmente, pessoas pobres) incorporarem a ideia do reaproveitamento. A resistência era sempre associada a ignorância, falta de informação, superstição (por exemplo, acreditar que um certo alimento pode impedir a gravidez, ou algo do tipo). E eu absorvi esse discurso, até uma cena que marcou a minha vida:

 

Entrei na casa de uma sertaneja bem pobre, para entrevista-la. Excessivamente magra, com aparência adoecida e envelhecida, apesar de não ter 30 anos ainda. Disse-me que tinha dois filhos, e que a família se alimentava de feijão e, quando tinha, davam um pouco de carne às crianças. Ao lado da casa, vi que havia uma plantação de Palma – o que é comum, seja por esses cactos crescerem naturalmente, ou porque são cultivados para alimentar o gado. Perguntei-lhe, então: “Por que você não usa toda essa Palma ao lado para fazer suco ou outras receitas? Tem gente aqui ensinando isso”. Ela respondeu sem pestanejar: “Eu prefiro morrer a comer isso”.

 

A resposta me atravessou o estômago, como um raio. Digeri durante semanas (anos, na verdade) a informação. E aí comecei a me interessar não apenas pela perspectiva de toda aquela gente bem-intencionada, que me encantava os olhos com seus relatos de como o reaproveitamento era uma ideia excelente, e que seduziam o meu paladar, com as receitas que me faziam experimentar. Interessei-me também, mais e mais, pela perspectiva de quem recebe esses projetos (algo óbvio, mas que havia fugido ao meu olhar elitizado).

 

E comecei a perceber que os rostos sorridentes que propunham os projetos eram, em sua maioria, de pessoas de classe média (baixa, média ou alta) que haviam tido a oportunidade de escolher o que comiam, fosse em casa ou fora, nas lanchonetes e restaurantes da vida. E para eles, como para mim, comer uma moqueca de bolachão ou de buço de bananeira, ou um bife de casca de banana, era algo pitoresco. Mais uma opção no cardápio. Um sabor novo, que se constrói em referência ao que já foi comido. Quem, desse grupo, come moqueca de bolachão, está fazendo inconscientemente a tradução daquele sabor em relação à moqueca de peixe, de camarão ou vegetariana (cheia de legumes) que já experimentou. Quem come o bife de casca de banana, sabe bem qual é o sabor de um bife de carne.

 

Já essas pessoas, muitas vezes, não. Ou não tiveram acesso a todo esse repertório, ou o acesso é limitado ou raro. E quando um grupo de pessoas que têm acesso a um vasto cardápio sentam para comer o mesmo prato de Palma, junto com quem não tem esse acesso, o que estamos vendo é o mesmo ato dentro de duas narrativas completamente diferentes. O primeiro grupo sorri internamente, como quem diz: “Olha que alternativa legal! Eu poderia comer isso também” (sendo que, na prática, pouca gente come – eu, mesmo tendo achado gostoso, quase nunca como). O segundo grupo se entristece, como quem diz: “Já que o resto do cardápio não está acessível para mim, isso é o que me resta”.

 

E “isso” que resta tem um peso simbólico enorme. Lembro-me que, nessa época, ao contar a experiência aos amigos, comecei a ouvir relatos do tipo: “Ah, é verdade, meu avô nunca comeu abobrinha porque ele é da roça e abobrinha sempre foi alimento de porco”. Descobri que muita gente da roça não come soja por causa disso, por exemplo: é alimento de gado. E no sertão de Sergipe, Palma é alimento de gado. Quem seria aquela sertaneja se, simbolicamente, ela aceitasse como sua ÚNICA possibilidade de refeição a ração do boi? O que ela estava me dizendo, com sua resposta assertiva, é que ela estava protegendo sua dignidade como ser humano. Eu não sou alguém para ser tratado como um animal doméstico ou de abate.

 

Claro que aqui existe toda uma visão de mundo que coloca o “animal” como algo inferior ao “ser humano”. Embora eu, pessoalmente, critique bastante essa postura (mas ela fica para outra conversa), o que está em jogo aqui é o que isso representa no imaginário simbólico das pessoas. E, mesmo que a gente queira dizer que “animal e humano é a mesma coisa”, há algo hipócrita em afirmar isso e, ao mesmo tempo, diferenciar os seres humanos entre aqueles para quem comer comida de bicho deveria ser lindo e legal (então, não reclamem), e os outros que podem comer isso ou não, dependendo de sua escolha. E esses, geralmente, quando comem, é porque o alimento já foi apropriado como oficial, e deixou de ser alternativo ou de animal, como no caso da soja e da abobrinha.

 

Logo, inserir o reaproveitamento de alimentos – sejam eles alternativos, como a Palma, ou o processamento de alimentos comuns, mas que seriam jogados fora – só tem valor, só é digno, quando é um ato que faz parte de outro contexto, de inclusão e participação. Numa comunidade em que todos passam fome, por exemplo, o coletivo pode decidir juntos usar um alimento alternativo ou que está para sair da validade, para sobreviver. Numa cidade onde o reaproveitamento está na mesa da classe média e alta, e na qual a população mais pobre recebe como política PRIORITÁRIA alimentos em estado digno, que fazem parte da sua cultura alimentar, o reaproveitamento pode surgir como uma extensão de uma cultura de menos desperdício que é sustentada por todos.

 

Mas sugerir como louvável que a população pobre engula o reaproveitamento de alimentos como parte de uma “cultura mais sustentável” que se aplica somente a ela, enquanto outra parte da população não incorpora essa cultura, porque não a interessa – ou, sendo mais direto, porque ela mesma tem certo nojo disso – é cinismo e crueldade. E o pior: a população que continua podendo escolher o que comer (que, geralmente, não é ração feita com alimentos saindo da validade), ainda pode se reunir em seus restaurantes para celebrar a sua inteligência e solidariedade perante a “população mais pobre”.

 

Nojento, mesmo, não é a ração humana. É isso.

 

Mostre-me uma prefeitura que incentiva toda a população – rica ou pobre – a partilhar a sua cultura alimentar, a compartilhar tanto alimentos em bom estado quanto os de reaproveitamento, e aí eu aplaudirei um projeto como esse. Mas enquanto ele for troféu fofura para uma gestão que insiste em demarcar o espaço e os privilégios entre ricos e pobres, não apoiarei jamais.

 

  • A falta de representatividade social:

 

Para quem não sabe é o que é cultura (sem ser no sentido de arte, festividades etc), ela é a arquitetura invisível de nosso jeito de pensar, sentir e agir. Ela baseia-se nas premissas ou crenças que utilizamos para ler nós mesmos, os outros e o mundo. E essa arquitetura invisível se expressa no mundo por meio de coisas visíveis e concretas, como símbolos, processos, comportamentos e rituais. Então, entendendo o invisível, você compreende o visível. Ou seja, entendendo as crenças de um grupo, você compreende seus símbolos, rituais, comportamentos etc. E entendendo o visível, você compreende o invisível. Ou seja, observando os símbolos etc, você percebe qual o sistema de crenças por trás.

 

Isso dito, olhemos como SÍMBOLO a foto de lançamento do Programa que a própria prefeitura divulgou. Eu me dei o trabalho de contar quantas pessoas estavam na foto: 31. Dessas, duas pessoas negras. Talvez algum negro de pele clara que não reconheci apenas pela foto. Certamente, a maioria branca. E não preciso nem investigar profundamente para afirmar com segurança que não são brancos da periferia, em sua maior parte.

 

Agora, vamos voltar para o público alvo do Programa Alimento para Todos. Eu, por exemplo, dei treinamento para dezenas de creches diretas e conveniadas em bairros da periferia de São Paulo. Também trabalhei com famílias em situação de trabalho infantil e, direta ou indiretamente, visitei muitos outros espaços de educação e de assistência social da cidade. Posso garantir que nesses ambientes a relação de negros e brancos é inversa à da foto de lançamento. E não estou falando apenas do “público atendido”. Estou falando dos profissionais – educadores, coordenadores pedagógicos e diretores desses espaços. A grande maioria, negros (de pele escura ou clara).

 

Vamos analisar agora a foto como símbolo de uma certa cultura. O que a foto do lançamento de um projeto dedicado a assistir principalmente à população negra, mas que é dominada por pessoas brancas, nos conta? No mínimo, que existe falta de representatividade de classe, para não dizer racial. A matemática é simples: se a população que vai ser ALVO do projeto tivesse sido protagonista dele, sendo não apenas ouvida, mas sendo parte da equipe que pensa e executa o projeto, essa foto TERIA DE TER um número maior de pessoas negras. Por uma simples questão estatística. Pelo reconhecimento básico de quem de fato construiu o Programa (tivesse ele sido construído pela população que vai recebe-lo). A não ser que a prefeitura teve a habilidade de pinçar quase que somente os representantes brancos do público alvo. E aí teríamos, também, um outro grande problema.

 

E se o argumento fosse que houve participação da população pobre e/ou negra, mas que na foto está a equipe da prefeitura, ou a equipe competente para LIDERAR o projeto, que era branca devido a qualificações técnicas, temos um problema ainda maior. Tanto pelos pressupostos de quem trazemos para celebrar nossas conquistas (equipe da prefeitura ou público atendido e que coparticipou do projeto?), quanto de como se compõe a tal equipe da prefeitura (prioritariamente brancos numa cidade majoritariamente negra?), ou de quem pode ou não liderar projetos (#muito-privilégio-branco-envolvido), quanto pelo símbolo cultural que seria destacar no lançamento a equipe estratégica, e não a equipe operacional. Ou seja, de nenhum ângulo possível, a foto do lançamento de um projeto como esse, repleta de gente branca, se justifica. E o fato de nós vermos essa foto como “natural” revela não apenas o racismo e elitismo contido no projeto, mas na população que o apoia.

 

E tudo isso é apenas um pouco do que, para mim, faz com que exista algo errado – muito errado – com o projeto Alimento para Todos.

 

 

 

 

 

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