Estruturas de Poder: a certificação do conhecimento (3ª parte):

Esta é a terceira de uma série de reflexões sobre mecanismos de acúmulo de poder como estratégia, ainda que ineficiente, para lidar com nossa vulnerabilidade. Um dos caminhos mais arraigados na cultura ocidental atual é a certificação do conhecimento como forma de concentração de poder.

 

Quem é certificado adquire:

 

  • Privilégios comerciais, pois acessa mais mercados e pode cobrar mais.

 

  • Status social, pois é visto como alguém mais respeitável que os outros.

 

  • Privilégios sociais, como fruto do status, desfrutando do acesso a bens culturais, espaços políticos e de ter seu lugar de fala e de escuta priorizado.

 

  • Direito de regulação do conhecimento, decidindo que saberes são válidos ou não e quais devem ser reproduzidos e amplificados.

 

  • Direito de avaliar, recompensar e punir os não-certificados, tendo, portanto, a chave de retirar e dar poder a quem, quando e como quiser.

 

  • Direito de criar e reproduzir informações, saberes e metodologias, independente da qualidade, já contando com o pressuposto de que será levado a sério – pois pressupõe-se que quem é certificado sabe do que está falando.

 

Existem muitos tipos de certificação formal e informal. Entre as formais, estão: os diplomas, certificados de participação em cursos e atividades e títulos. Entre as informais, estão: ter participado de ambientes hipervalorizados pela cultura, a ponto da mera participação já ser vista como um certificado. Por exemplo, ter aparecido num programa de televisão famoso, ter feito uma palestra na ONU, ter recebido um prêmio (que lhe dá direito a falar sobre muito mais que o tema que lhe conferiu o prêmio).

 

Esse mecanismo, atualmente, é disperso e confuso, pois o privilégio da certificação não é mais uma exclusividade de grandes centros do saber – como seriam, por exemplo, Harvard e USP, no caso das universidades. Mesmo no caso da certificação formal, os centros de saberes oficiais explodiram, e há inúmeras organizações dando certificados não-oficiais. No caso da informal, a mídia e o mecanismo da fama estão pulverizados e segmentados, com muitas opções de canais, redes sociais, nichos de comunicação etc.

 

Isso traz uma complexidade maior, pois a certificação que gera poder num ambiente é completamente inócuo em outro. Ser certificado em medicina espiritual pode significar muito no nicho dos terapeutas transpessoais e zero num hospital tradicional (e vice-versa). Ser um life coach que apareceu no programa da Fátima Bernardes pode significar tudo para uns e nada para outros. Ser capa da revista Cult pode ser incrível para um grupo e irrelevante para outro.

 

Ainda assim, dentro dos seus nichos, e com suas limitações e confusões, a certificação ainda é um fetiche de muitas pessoas, ávidas por alcançar um lugar de poder que neutralize sua sensação de insegurança. Como se o certificado fosse lhes garantir, por si só, as necessidades básicas de segurança material, pertencimento e reconhecimento. Até mesmo nichos que seriam alternativos ou que surgiram a partir da valorização dos saberes tradicionais, naturais ou populares, como aqueles ligados à maternidade, à espiritualidade e à cura pela natureza, entram nessa dinâmica. Pessoas acumulam poder, atualmente, certificando-se em se relacionar, amar e se comunicar de forma saudável.

 

Não há nada de errado com a certificação em si. Ela apenas mostra que aquela pessoa, aos olhos de um grupo específico, teve contato – ou obteve maestria – num saber que também é específico. Não garante que esse saber vai ser bem utilizado. Nem que aquele saber é o melhor ou o único. Nem que essa pessoa seria vista como certificada, aos olhos de outras pessoas, com outras perspectivas.

 

A certificação apenas nos conta um pouco da história daquela pessoa. Que é algo importante no processo de construção da confiança. Bom saber que estou contratando um engenheiro ou médico certificado, pois esse é um indicador (entre vários), que me conta que ele é confiável. Mas não garante. Não me diz quem é essa pessoa, e com que sabedoria ela usa o que sabe. E este não o indicador absoluto, pois a confiança pode ser construída por outros caminhos (por relação direta, intuição, recomendação, entre outros).

 

Mas, na prática, ela é usada como pressuposto. De quem sabe o saber mais valorizado. De quem deve ser ouvido. De quem devemos comprar (serviços, bens, conhecimentos). Em quem devemos votar. De quem pode nos dizer quem somos e o que podemos. E é por isso que tantos saberes são esquecidos – na nossa cultura, por exemplos, saberes negros, indígenas, populares, tradicionais. Que tantas pessoas são esquecidas (mestras nesses saberes mencionados). Que eu recebo tanta gente cheia de baixa autoestima e insegura de simplesmente ser quem é e botar em prática o conhecimento que a vida vem lapidando nela desde que nasceu.

 

Mas eu só aceito ser eu se alguém me certificar.

 

Que papel estamos cumprindo no jogo da certificação? Como eu oprimo a mim ou as outros, neste jogo? Quem fica no centro e quem está esquecido? Quem ganha com tudo isso – e o quê?

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