Espiritualidade Orgânica

Estive meditando sobre a semelhança de certos comportamentos que experimento em ambientes de desenvolvimento humano e espiritual e a seção de orgânicos do supermercado. Em meu processo de vida, percebi que às vezes, no campo das emoções e do espírito, posso confundir o que parece lindo e deliciso – mas que é feito à base de agrotóxicos emocionais – e aquilo que parece meio defeituoso – mas esconde um incomparável sabor de vida e saúde.
No supermercado, a seção de “não-orgânicos” é composta de legumes e verduras altivos, super coloridos, grandes, bem formados. Um bom exemplo é a cenoura: a pobre cenourinha orgânica, perto da “comum”, é pequena e torta. As alfaces à base de agrotóxicos não têm bichinhos, e as uvas e os morangos parecem estar sempre fresquinhos. No entanto, quando como um morango orgânico, ou faço um petisco com cenoura crua sem agrotóxicos, além de ser mais saudável, a diferença de sabor é notável – o orgânico é disparadamente mais gostoso.
Por quê?
Da mesma forma, frequento e já frequentei espaços de autoconhecimento ou de desenvolvimento espiritual absolutamente atraentes. As pessoas sorriem, cheias de auto-estima, abraçam, olham nos olhos, cantam e dançam celebrando o amor. Elas trabalham suas feridas de infância, realizam curas interiores e parecem orgulhosas de seu arrebatador estilo de vida espiritual. Lugares assim são lugares limpos, tocam música calma, investem no cuidado estético apurado, e são rodeados de natureza exuberante. No entanto, diante dos olhares de irritação toda vez que algum membro da tribo desvia desse encantador comportamento, persiste em mim a sensação de que algo está errado. Uma sensação de que aquela estética do bem-etar está sendo sustentada por algum agrotóxico de violência emocional. E o que é mais interessante: essa sensação não existe em outros espaços, onde há conflito, desarmonia estética, natureza capenga, entre outros.
Por quê?
Uma possível resposta está numa dinâmica que só pode ser entendida quando amplio meu olhar para além do olhar da vitrine. Na vitrine do supermercado, basta arrumar o legume de um jeito vistoso. Na vitrine da vida, muita coisa pode parecer bela: basta achar o tom de voz certo, forçar um sorriso por algum tempo, treinar um olhar profundo ou forjar um choro de emoção. Na vitrine conseguimos ser um encantador guru moderno, propagando o amor e a espiritualidade por meio de palavras doces, meigas e amorosas, e dando sedutores abraços calorosos. Pois na vitrine a relação é pontual e superficial o suficiente para que não se precise enxergar o processo – só o resultado (que está na vitrine).
Entretanto, tudo que está na vitrine é fruto de um processo, e vai continuar a ser depois que sair da vitrine. Uma cenoura turbinada por agrotóxicos é fruto de um processo de degradação do potencial saudável do alimento, e carrega essa informação em seu belo e colorido formato. E depois de ser comprada e ingerida, ela continua seu processo de degradação – de si e daquele que a ingere, pois o processo não para só porque ela pousou linda e laranja por alguns dias num supermercado.
Um invejável grupo de pessoas rindo, brincando e dançando, parecendo absolutamente felizes, seja numa balada regada a álcool ou num centro de yoga altamente espiritualizado, também é fruto de um processo. E esse processo, que gera aquela alegria momentânea, pode variar de muito a nada amoroso. Quando decido ampliar meu olhar para além do olhar da vitrine, descubro muitas vezes processos cheios de incoerência, baseados numa felicidade plástica, artificial e forçada, que no caso de uma balada às vezes se nutre do “prazer na dor” – no alívio das tensões cotidianas e na lamentação por tudo que está errado na vida pessoal, profissional e no mundo, e no caso dos espaços de autoconhecimento e espiritualidade, se nutre do cumprimento de certos dogmas da espiritualidade ou do “ser feliz”, que não se sustentam numa relação mais profunda, e que são cosntruídos à base da repressão da espontaneidade e do verdadeiro potencial das pessoas.
Por sua vez, às vezes um ambiente aparentemente menos espiritualizado, menos inspirador, menos esteticamente cuidado, menos harmônico, é resultado de um processo orgânico, em que as pessoas simplesmente são o que são, sem forçar nada. E por incrível que pareça, esses ambientes têm um sabor delicioso para mim. Eles são suficientemente amorosos para acolher tanto a luz quanto a sombra, e direcionar todas essas energias para a positividade suprema. São esses ambientes que eu desejo construir, como líder, gestor, consultor, marido, pai, parceiro, amigo. Ambientes verdadeiros, sem frescura, sem superstição, sem dogma, sem abraços e sem sorrisos que dizem secretamente: “Atue de forma amorosa, custe o que custar”.
Nada é tão preto no branco, claro, e há ambientes em que tudo é ao mesmo tempo lindo, amoroso e verdadeiro. Também não quero valorizar a polaridade oposta. Ambientes conflituosos, em que criticamos, julgamos, não nos abraçamos, e valorizamos uma perspectiva material e individualista da vida dificilmente seriam meu ideal de vida. Mas esses ambientes são como os de felicidade artificial, só que virados do avesso: enquanto uns querem forçar a luz, outros querem forçar a sombra. Dá na mesma.
Essa polaridade oposta, que também existe nos meios em que as pessoas buscam crescer emocional e espiritualmente, valoriza a catarse. Temos de olhar para a ferida e expressá-la – e quem não faz isso é resistente, ou está em processo de negação. Não tem coragem. Mas também aí eu sinto uma grande dose de agrotóxico, porque no que eu entendo como espiritualidade orgânica, existe um acolhimento de tudo – inclusive do que chamamos de negação e resistência, que são recursos legítimos para o nosso crescimento – para que a pessoa possa ser o que é.
No que eu chamo de espiritualidade orgânica, ninguém “tem que” nada. No campo emocional e espiritual, o agrotóxico está nesse “tem que”. Porque o “tem que” serve ao interesse do outro, ele é utilitário. Eu tenho que abraçar e ser amoroso porque o contrário perturba a homeostase das pessoas que estão ao meu redor. Eu tenho que socar uma almofada e expressar a minha raiva porque o contrário rompe com o esquema mental de alguém, que aprendeu que aquilo é o certo. É aflitivo sustentar uma relação em que o outro não é perfeito. Em que ele se irrita e não é amoroso, ou, pelo contrário, é sempre bomzinho e nega seu sofrimento. Em que ele se esconde. Mas é justamente essa sustentação que é profundamente transformadora. É mais fácil forçar uma pessoa a agir de forma amorosa do que tomar tempo para desfrutar de uma relação que transmuta verdadeiramente as emoções negativas em amor. É mais fácil pressionar uma pessoa “reprimida” ou “boazinha” a mudar, a “sair de negação”, que sustentar uma relação profunda e de longo prazo com um ser inteiro, que têm em si inclusive dinâmicas difíceis e que só serão curadas em longo prazo, por meio da paciência diligente e amorosa, e não de brigar contra de suas feridas ocultas.
Meu manifesto é para que eu possa contribuir para criar, cada vez mais, ambientes de espiritualidade orgânica. Em que as pessoas não “tem que”, mas são “convidadas a”. Que tal se sorrirmos e nos abraçarmos? Que tal se trouxermos essa dor da escuridão para a luz? Que tal se cantarmos e dançarmos juntos? Que tal se nos engajarmos numa conversa profunda sobre aquilo que incomoda? E se não quisermos fazer nada disso, que tal fazer algo diferente? Está tudo bem, de um jeito ou de outro. Pois o que realmente vai trazer resultados duradouros, é viver esse processo de forma orgânica, com amor pelo que existe aqui e agora, e não exigir com uma violência sutil que nós alcancemos pseudo-resultados para expor na vitrine da felicidade.
Quero estar em ambientes de espiritualidade orgânica, em que amar significa aceitar, acolher e usar o que existe aqui e agora para atingi o melhor resultado possível, e não o resultado que eu “tenho que” atingir. Quero estar em ambientes em que o sorriso, o amor, o abraço e o carinho são frutos da percepção e da expressão do meu ser integral, e eles às vezes podem ser tortinhos e com bichinhos, talvez não seguindo as regras da linguagem corporal, nem usando a linguagem mais doce, nem emanando a mais brilhante aura, sem acompanhamento de anjos nem da luz cor violeta, mas, ainda assim, ele é verdadeiro e autêntico, porque é orgânico. Talvez quem me abrace ou converse comigo não me ache inspirador ou cheio de energia divina, mas talvez esse abraço tão chocho na vitrine sustente fora da vitrine uma relação de dias, meses ou anos, e não apenas algumas horas de vivência num centro de terapias ou alguns dias de retiro com gente encantadora e iluminada.
Pois ser encantador e iluminado por muito tempo cansa, e se eu quisesse me manter no salto talvez eu tivese que fazer alguns sacrifícios, como me manter longe de relações profundas, onde outros aspectos da minha personalidade poderiam ser revelados. Ou talvez eu precisasse criar um universo em que tudo funciona sempre a meu favor, em que nada nem ninguém me contrariam, onde sou aparentemente feliz por estar sempre, como Narciso, diante do espelho contemplando a minha própria beleza. Mas num ambiente assim, só quem está no espelho é (aparentemente) feliz. Os demais – que reprimem sua espontaneidade e seu potencial para sustentar o narcisismo alheio – são felizes só por pouco tempo, enquanto o agrotóxico daquele lindo ambiente artificial ainda não estragou sua saúde. Quando o tempo passa e os efeitos colaterais começam a aparecer, a maior parte das pessoas cai fora e vai buscar algo que, mesmo aparentemente menos bonito e amoroso, é mais verdadeiro.
Por isso, em vez de ambientes assim, em que a felicidade é intensa, mas temporária, quero escolher cada vez mais os ambientes e as relações pautados pela verdade nua e crua. A verdade só se revela com o tempo, e é construída aos poucos. Um verdadeiro relacionamento, puro, amoroso e forte, toma tempo para ser construído e não pode ser artificialmente acelerado nem pela catarse forçada e nem pela música calma, pelo sorriso doce, pelo abraço caloroso, de alguém que só está ali comigo no espaço da vitrine, e não no espaço da realidade do dia a dia, em que o doce tem de conviver com o azedo, o calmo tem de conviver com o barulho, o acerto tem de conviver com o erro, o bonito com o feio, e por aí vai. Um verdadeiro relacionamento (e a verdadeira felicidade), eu acredito, vai sendo construído à medida que acolho, digiro e transcendo todos os aspectos bons e ruins da vida, e vou crescendo, em espiral, lado a lado com os outros. Um casamento é uma metáfora perfeita disso: não dá para dizer que amo só porque me apaixonei pelo outro em sua vitrine inicial – só depois de anos de transcendência de conflitos, de encontros e desencontros, e de descobrir novas e incontáveis formas de admirar o parceiro, a um ponto em que os dois realmente se tornam uma única sinergia, podemos falar em amor verdadeiro.
Da mesma forma que acelerar o crescimento dos morangos, uvas, alfaces e cenouras está nos adoecendo, a não permissão de sermos o que somos, e a pressão para sermos amorosos, felizes e doces na vitrine dos espaços de autoconhecimento e espiritualidade pode nos tornar artificiais, sem gosto, sem resiliência, sem verdade e sem profundidade. E isso está longe de ser espiritual.
Escolho uma espiritualidade orgânica, em que menos é mais. Menos experiências pontualmente incríveis e mais estar junto, em profundidade, com tudo que isso tem de delicioso e de desafiador. Menos certezas do que e como transformar o outro e mais vontade de simplesmente estar junto, vulnerável e inteiro. Desejo menos metodologias prontas de alcançar o bem-estar supremo e mais co-criação, explorando o imprevisível, o emergente, e abarcando todas as polaridades da vida. Escolho menos queixos caídos diante dos exuberantes gurus com seus discursos inspiradores e mais experiências de se sentir igual e unido ao outro – um outro comum – como fruto de um longo processo de aproximação e vínculo, como sugerido pela raposa ao Pequeno Príncipe.
Em vez de simplesmente amar o outro, pois isso dá para fazer à distância, desejo amar com o outro, pois isso só dá para fazer junto, no dia a dia, no momento de bom humor e no momento em que tudo está um saco. E isso não significa se resignar ao lado chato da vida – a escolha de acolher o que foge à estética da felicidade torna-nos capazes de usar essa energia a favor da felicidade, como um combustível, que com o tempo vai se dissolvendo e se tornando ainda mais felicidade verdadeira. Aí, sim, posso falar de felicidade, pois não é algo que exclui aquilo que “não é feliz”, mas sim algo que automaticamente acolhe e transmuta tudo em mais e mais felicidade. A espiritualidade orgânica não é um processo de aprender a conviver com os opostos, mas sim de transmutar os opostos num único e verdadeiro estado de consciência feliz. Que por ser real, não precisa se defender do que lhe é diferente. Mas, para isso, é preciso tempo e é preciso olhar mais para o processo que para o resultado.

Por isso, escolho a partir de hoje ter menos relações distantes e pontuais de idolatria com os gurus do bem-estar e mais relações sustentáveis, de longo prazo, com meus parceiros e irmãos da vida cotidiana (sejam eles gurus ou não), pois são essas as relações que permanecem e se aprofundam por toda a eternidade.