Árvores Vivas

Para a Juliana Gatti, que é uma árvore que fala!

Aí começou assim: eu achava que tinha pessoas que eram árvores. Porque árvores, para mim, eram coisas feias, sujas, no meio da cidade. Não dava para sentar perto delas, porque tinha terra que sujava o vestido, e restos de papel, comida e bituca de cigarro. Tinha até gente que fazia xixi e cocô no pé da árvore! Eca!

E eu via pessoas que eram assim também. Ficavam lá, em silêncio, sujas e com os olhos vermelhos, sentadas em pedaços de papelão ou em colchões tão velhos que nem dava mais para chamar de colchão. “Eles moram na rua”, dizia minha mãe. “Não chega perto, porque pode ser perigoso”. E eu não chegava.

Mas eu sabia que as árvores podiam ficar bonitas se a gente cuidasse delas, porque na minha casa sempre teve um jardim, e ele era muito lindo. O seu Adelmo, nosso jardineiro, picava as plantas cabeludas, colhia as folhinhas secas, molhava, trocava a terra… E elas ficavam verdinhas, verdinhas, florzinhas, florzinhas, coloridinhas como o meu quarto!

Por que uma pessoa não pode ficar assim também?

Aí um dia eu estava voltando da escola e sentei perto de um homem, que parecia uma árvore seca e cinzenta. Ele me deu bom dia e pediu comida. Eu tirei da minha lancheira biscoito integral e suco fresquinho de melancia. Ele comeu e me agradeceu. Depois se levantou e foi embora. E eu fiquei lá, com aquela cara de “e agora o que é que eu faço?”.

Depois que o homem já tinha ido muito embora (ou seja, ele foi tão embora que eu nem estava mais me preocupando com ele), eu comecei a olhar a meu redor. Eu estava sentada debaixo de uma árvore! E tinha resto de comida, bituca de cigarro e cheiro de xixi de gato. Ai meu Deus! Mas eu estava ali… E ainda tinha na minha lancheira uma maçã e uma garrafinha de água.

Olhei para a árvore. De alguma forma, ela me lembrou aquele homem e eu, brincando, resolvi perguntar: “O senhor está com sede? Ainda tem maçã e água na minha lancheira”. E foi aí que a árvore respondeu: “Não, obrigado, já estou satisfeito”.

Rá! Essa é boa! Árvore que fala!

Eu fiquei eufórica! Era estranho, mas também parecia muito natural, não sabia o porquê. Afinal, se eu podia ver as pessoas como árvores, por que não podia ver as árvores como pessoas? “Ô dona árvore, a senhora fala, então? Que legal!”. A árvore respondeu: “Senhora não, que eu meu nome é Fazimiro Folhaseca. Um pouco mais de respeito, menina!”

Fazimiro Folhaseca! Que figura! Eu não podia acreditar. Aliás, ninguém ia acreditar. E pensando bem, eu nem queria que acreditasse. Queria guardar aquele segredo só para mim. Eu era amiga de uma árvore… “Ô, seu Fazimiro, eu não sabia que as árvores eram vivas! Essa aí é nova para mim”.

“Ah…”, dise o Fazimiro com tom de professor, “quer dizer que a senhora não sabia que uma árvore é viva? Menina, olhe ao seu redor. O que é vivo por aqui?”. Eu olhei e apontei uns adultos, umas crianças, três pássaros, dois cachorrinhos e um gato. “É só isso? Tem certeza?”, perguntou a árvore. Eu fiquei confusa, mas disse que sim. “Pelo menos não tem mais nada por aqui que mexe e faz barulho…”, disse, constrangida.

Eu não tenho certeza, mas acho que foi nessa hora que eu ouvi o Fazimiro falando baixinho algo como “esse vai ser um dia daqueles…”. Depois ele voltou a falar comigo e pediu: “Menina, vem cá e me dá um abraço?”. Ele pediu com tanto carinho, com uma voz tão doce de árvore de fruta doce, que eu não resisti, e a abracei. Eu a abracei com muito carinho.Tanto carinho que fechei meus olhos. E senti.

Senti que tinha um líquido que percorria por dentro de sua casca, que parecia como o sangue que esquenta o meu corpo. Senti que a casca era às vezes áspera, às vezes macia, e que havia alguns insetos que subiam e desciam pelo tronco. Senti que embaixo de suas folhas era mais fresco que quando eu estava debaixo do sol quente, e que o vento ali embaixo era gostoso e soprava sons engracadinhos em meu ouvido. Senti que eu pisava em suas raízes e que elas desciam fundo, para um lugar onde habitavam minhocas e muitos pequenos seres.

Senti tantas coisas que meu coração começou a bater mais forte, e é como se eu e a árvore fôssemos um só. Eu senti que a copa da árvore (a minha copa) dançava para alegrar o sol, e que para muito além de suas raízes, a árvore se conectava com águas subterrâneas e rios, que na minha cidade estavam aprisionados, poluídos e tristes. Senti que eu (a árvore) era paciente, amoroso, e que sentia muita falta dos córregos d’água, de outros bichos, e que mesmo assim eu continuava sendo um caloroso amigo dos insetos, dos gatos, dos cachorros, dos pássaros e das pessoas.

Eu senti que eu era uma árvore. Uma árvore viva como o sol nascente. Como o rio sapeca. Como a terra fofa e molhada. Como a lua prateada. Como a joaninha que pousou um dia na ponta do meu nariz. Como o jardim da minha casa. Como eu, o papai e a mamãe. Como aquele triste homem para quem, minutos antes, eu havia oferecido biscoito integral e suco de melancia. Uma viva árvore viva.

Acordei no fim da tarde, com minha mãe me chamando. “Filha! Acorda, filha! Estava procurando você que nem uma louca!”. Eu não sabia onde estava, nem que horas eram. Sabia que eu era (que eu sentia) puro amor. Sorri para minha mãe com um sorriso doce de árvore de fruta doce, e fui em silêncio para casa. E nunca mais fui a mesma.

Comecei a sentar diariamente perto das árvores. Conversava com elas, meditava, ficava em silêncio. Sonhava sob sua sombra. Fazia deliciosos piqueniques ao seu redor, que compartilhava com os insetos, os passarinhos, e as pessoas que, pouco a pouco, começaram a sentar ao meu redor também. Elas não me conheciam, nem eu as conhecia, mas elas gostavam de curtir a árvore e toda a vida que existia dentro, fora e ao redor dela. E com isso, nós erámos felizes.

Aquele homem, um dia, voltou e sentou-se conosco. Comeu, bebeu, disse uma ou duas palavras. Ele parecia feliz de estar ali, conosco. Era como se ele estivesse esperando a vida inteira para que aquele lugar onde ele havia sentado tantas vezes pudesse estar cheio de vida, como talvez um dia tenha sido. Contente e em paz, ele se recostou na árvore, de olhos fechados, com um semblante de quem está indo lá para o fundo, onde as raízes das árvores tocam o coração do mundo. Fomos todos embora, e ele ficou. Na outra manhã, quando voltei, ele ainda estava lá mas, de certa forma, não estava mais, porque em seu corpo não havia mais ar, e ele estava frio como um picolé. Mamãe me explicou que ele havia morrido.

Fiquei triste, e ao mesmo tempo contente, de que aquele homem que parecia uma árvore seca e cinzenta, havia morrido com a mesma paz de uma árvore que descansa à beira de um lago tranquilo. Como ninguém sabia seu nome, nem de onde veio, papai resolveu ele mesmo cuidar do pobre homem, que foi levado para um lugar chamado crematório, onde seu corpo foi queimado e virou um punhado de cinzas. Eu trouxe as cinzas para casa e resolvi jogá-las debaixo de uma árvore.

No outro dia, com o coração carregando tristeza e respeito e a mochila carregando uma caixinha com as cinzas do homem desconhecido, fui conversar com Fazimiro. Chorei um pouco, e mostrei a ele a caixinha com os restos do homem. “Minha filha”, disse Fazimiro, “Acho que não contei para você, mas eu já estou neste planeta há pelo menos cem anos. Eu sou até jovem, porque tem árvores que chegam a viver mais de quinhentos anos. Nesse tempo todo, já vi muitas pessoas, animais e insetos irem e virem. Este homem não foi o primeiro, nem será o último”.

“Só que ele não foi embora para sempre”, disse a árvore. “Assim como vocês, humanos, se alimentam de nossos frutos, folhas e raízes, nós também nos alimentamos de tudo que vocês deixam na terra e que nós podemos absorver. Nós não absorvemos os sacos plásticos e as bitucas de cigarro (na verdade essas coisas nos fazem um mal danado), mas o corpo de vocês, depois de certo tempo, vira alimento para nossas raízes, nosso tronco, nossos galhos e tudo que a gente produz. Nós vivemos em vocês e vocês vivem em nós. Por isso que para nós, árvores, não existem dois seres separados – humanos e árvores. Somos todos um só. Árvores são seres humanos vivos. E seres humanos são árvores vivas. Claro que temos algumas diferenças – vocês andam, a gente não. Vocês têm o poder de construir e fazer coisas que nós não conseguimos. Mas todos nós respiramos, amamos, criamos coisas belas para os outros e viemos do mesmo lugar – a natureza”.

Naquele dia, novamente, senti como se eu Fazimiro fôssemos um só. E, estando com aquela árvore sábia e carinhosa, entendi que as árvores são testemunhas de tudo que acontece em nossa vida humana. Elas nos assistem e esperam, pacientemente, para que nós as percebamos, para que nós as reconheçamos e para que nós, de livre e espontânea vontade, decidamos sentar junto delas e ser felizes com elas. Elas não ficam paradas aguardando serem destruídas. Elas lutam. Mas elas não lutam contra nós. Elas lutam a nosso favor.

Parece igual, lutar contra e lutar a favor, mas não é. Quando a gente luta contra alguém, a gente xinga, bate, destroí e quer se vingar. Quando a gente luta a favor, a gente sabe esperar, a gente consegue tolerar até ser xingado e insultado, até que, com amor, a gente ache o jeito mais doce de árvore de fruta doce de convencer a outra pessoa de que bom mesmo é amar, estar junto e ser feliz. E é isso que uma árvore faz: ela sabe esperar até que sua sombra, seus frutos, a melodia de seus amigos pássaros e toda a vida que ela faz brotar a seu redor falem mais alto que nossos serrotes, nosso desprezo e nossas bitucas de cigarro.

Pelo menos, foi isso que aconteceu comigo. E eu cresci assim, com esse jeito de árvore. De árvore viva. E aí eu casei, tive filhos e netos, e um dia fiquei velha. Velha, mas ainda teimosa, moleca e engraçada, como sempre fui desde a época em que conheci Fazimiro. Por isso que, ao longo dos anos, eu fui comprando as casinhas ao redor da casa dos meus pais, e fui abrindo jardins e bosques, abertos para todo mundo passear e aproveitar. O povo da cidade gostou tanto que as árvores dos meus bosques viraram ponto turístico! Só não consegui proteger Fazimiro, porque ele era uma árvore na calçada da rua. Pertencia à prefeitura, e não a mim.

E um dia quiseram cortar Fazimiro. Diziam que iam construir um novo prédio no lugar, um lugar onde iam vender lindos artigos de madeira, uma loja chique onde ia até ter um salão contando a história das árvores. Queriam aproveitar que meu bosque era lugar turístico. Queriam aproveitar para ganhar mais dinheiro. Fala sério! Eu já estava velhinha, mas não tive dúvida. Fui para baixo de Fazimiro e lá fiquei. “Só saio daqui depois que prometerem que não vão cortar Fazimiro jamais!”, eu gritei. “Ele é uma árvore de quase de duzentos antos, e é meu amigo!”.

Claro que o pessoal achou que eu estava doida. Menos a minha família e as pessoas que frequentavam os bosques da minha casa. Eles sabiam (porque eles sentiam) que as árvores eram vivas, que eram nossas irmãs. E, em silêncio, eles me apoiaram. E ali eu fiquei. Um dia, dois, três, uma semana… E como eu já era uma velhinha (pelo menos nessa hora isso conta!) a prefeitura começou a ficar preocupada. Já pensou se eu morresse por causa deles? Ninguém queria ser a responsável pela morte de uma velhinha debaixo de uma árvore qualquer na calçada de uma rua qualquer.

Demorou, mas um dia minha neta veio me contar: “Vovó, chegou um comunicado oficial da prefeitura. Não vão mais cortar Fazimiro. Na verdade, querem até abrir um novo bosque no lugar onde ia ser a loja!”. Meus olhos se encheram de lágrimas, e o coração chorou de alegria! Cansada e feliz, reclinei-me no tronco de Fazimiro, como há muitos anos atrás aquele homem havia feito depois de compartilhar de nosso delicioso piquenique. Fechei os olhos e sorri, com um semblante de quem está indo lá para o fundo, onde as raízes das árvores tocam o coração do mundo. E dormi.

Quando acordei, eu já não era eu. Era uma mudinha de árvore plantada no meio do bosque da minha casa. Minhas netas estavam crescidas e já tinha até um bisneto para nascer. Observei tudo com alegria. Um dia, uma das minhas netas (a mesma que me disse que não iam mais cortar Fazimiro) sentou próximo de mim e me falou, com carinho, de como sentia a minha falta desde que eu havia morrido. Ela me disse, com um sorriso doce de árvore de fruta doce, que estava certa de que minhas cinzas estavam agora vivas naquela jovem árvore. A jovem árvore que era eu.

Mas isso aconteceu há muito tempo, minha menina. Um tempo em que o mundo era muito diferente do que você conhece agora. Naquele tempo, as cidades eram cinzas e feias, os rios eram poluídos e aprisionados, e as pessoas muitas vezes eram tristes e apressadas. Não é como agora, em que, nós, árvores, abraçamos e brincamos com os rios, as pessoas e os animais. Hoje, as cidades são lugares felizes e limpos, e as pessoas sentam juntas, em círculo, para conversar e fazer piqueniques ao redor de nós, exatamente como você está fazendo agora.

Mas eu entendo que você esteja surpresa. Mesmo nessa época, não é todo mundo que consegue ouvir as árvores. Você é como eu: tem um dom especial. Talvez você ainda não entenda, porque é muito jovem, mas saiba que tudo nesse planeta é vivo. Tudo, mesmo aquilo que não se mexe e não faz barulho, tem a sua forma de respirar, amar e viver. Você não acredita? Não tem problema. Vem cá, então. Me dá um abraço.

“Já não quero muita coisa… só um lugar sossegado onde possa me sentar, pois estou muito cansado”, disse ele.

– Pois bem… (respondeu a árvore, enchendo-se de alegria) eu sou apenas um toco… mas um toco é útil para sentar e descansar… Venha menino, depressa, sente-se e descanse.

Foi o que o Menino fez. E a árvore ficou feliz….”

A árvore Generosa, Shel Silverstein