A força do coração

foto tirada em Davao, Flipinas, jurante a jornada

 

Enquanto volto para o Brasil, após 35 dias fora e de tantos acontecimentos internos e externos que mexeram comigo, relembro as reflexões que compartilhei logo que parti. Naquele momento, a pergunta que emergiu em mim dizia respeito a como criar estruturas mais fortes e poderosas para permitir que a consciência se expressasse de forma mais vigorosa e generosa em mim. E percebo que estou retornando não com uma resposta final, mas com uma vasta colheita de percepções que sinto vontade de compartilhar. Algumas colheitas já estão em mim, outras estou começando a regar, e outras, ainda, quero plantar no momento oportuno. A mais importante, agora, é a realização, num outro nível de qualidade, muito mais profundo, da força do meu coração.

 

Por diferentes motivos, durante minha vida, aprendi a trabalhar com, mas ainda assim temer, minha vulnerabilidade. Os pontos fracos da minha personalidade e da minha psique com as quais eu não consigo lidar tendem a se defender do medo da exposição, de forma pouco sustentável, das seguintes formas:

 

  1. Prazer compulsivo: associando prazer a algum pensamento ou ação compulsiva, eu consigo abafar algum aspecto interno com o qual não consigo lidar;

 

  1. Superstição: ritualizando algum tipo de comportamento ou pensamento, e o associando a um resultado que quero alcançar ou abafar, eu evito o medo de que o que me assusta pareça que vai de fato acontecer;

 

  1. Atitude contrafóbica: exagerando e expondo o meu medo, de forma catártica, abrindo as porteiras de meus contornos e limites saudáveis para pessoas que não estão preparadas para contribuir com meus processos internos e de vida, eu crio uma relação fantasiosa e condicional de que serei compensado, pela minha coragem, abertura e entrega, com a cura ou a proteção contra aquilo que me assusta;

 

  1. Complexo de inferioridade: abrindo mão de perceber e sustentar o que sinto e acredito num certo contexto, para concordar com alguma autoridade interna ou externa que, na minha fantasia, sabe o que é melhor para mim e pode me punir com a exposição ou destruição da minha parte frágil, caso eu não aja “corretamente” (de acordo com o que “correto” se apresente para esse tirano interno ou externamente projetado);

 

  1. Submissão: indo mais fundo no complexo de inferioridade, quando eu simplesmente atribuo prazer ao abuso do meu tirano interno ou externo, como forma de me render a ele, achando felicidade, ainda que pequena e ilusória, naquilo que me causa dor e medo, para poder ter o alívio – ainda que momentâneo – de desistir e ceder ao cansaço da luta constante.

 

  1. Arrogância: usando qualquer ilusão de poder que eu sinto que tenho, seja no campo financeiro, intelectual, de controle emocional ou de percepção espiritual, para tentar ter a sensação (e, às vezes conseguir) de que as pessoas se curvam a meus pés e fazem o que quero – em especial, que elas me servem em minhas necessidades não atendidas e fragilidades, quando eu preciso – para, assim, ter o alívio fugaz de continuar protegendo minha vulnerabilidade e estar no controle.

 

Essas estratégias, originalmente, não foram desenvolvidas com má intenção, mas como a defesa que eu tinha diante de situações que me pareceram mais assustadoras ou abusadoras do que minha capacidade para lidar com elas. O resultado imediato foi – e continua sendo – alívio momentâneo, mas o resultado em médio e longo prazo, pouco sustentável, é uma frustração imensa por não conseguir dar saltos maiores no meu desenvolvimento interno e externo, por não conseguir sustentar coisas que sei que são poderosas para mim, mas que poderiam, para meu inconsciente, destruir-me ou à minha imagem. Não me refiro aqui a saltos maiores que vêm do ego superexigente e que não se contenta com o que tem, mas dos saltos verdadeiros que o coração quer dar naturalmente, que já está, de fato, tentando dar, mas que não consegue completar, gerando a sensação de energia reprimida e potencial não utilizado.

 

Nada disso é muito dramático, na verdade, pois graças a Deus eu tenho uma vida muito equilibrada e feliz, mas como sinto que a consciência tenta se expandir sempre, trata-se de território não explorado e que não pode ser evitado, caso eu queira continuar evoluindo na minha autorealização e na minha capacidade de servir. E, também com a graça Divina, nesta jornada eu recebi muitas peças do quebra-cabeça, tanto no sentido do que preciso explorar mais quanto do como fazer essa exploração, e as peças, agora, enquanto escrevo, começam a se juntar, e sinto que podem trazer, talvez, insights para as jornadas de alguns que leem esse texto.

 

Alguns desses insights são:

 

  1. Abrir mão da gratificação pessoal em curto prazo: o medo da vulnerabilidade traz um desejo de que as coisas tragam para mim um resultado positivo imediato, na forma de prazer interno, de reconhecimento pessoal ou do impacto das minhas ações. Quando o resultado não vem, existe uma sensação de fracasso e frustração. Mas, na verdade, quando estou conectado com meu propósito, eu posso sustentar posições, erros e experimentações pelo tempo que for necessário, sem medo do caos, da desaprovação ou da emergência do meu lado sombrio, confiando que o resultado das ações não está nas minhas mãos e que o sofrimento de agora, quando pleno de significado, pode estar plantando uma felicidade ainda maior no futuro. Embora eu já soubesse disso intelectualmente, ganhei novas percepções profundas sobre esse aspecto e, principalmente, exercitei essa musculatura, tornando-me mais forte para essa sustentação.

 

  1. Preservar minha energia e meus contornos: pelo medo de estar sozinho com minha vulnerabilidade, uma parte minha evitava dizer não para qualquer troca social ou relação interpessoal, com medo de desagradar o outro. Eu evitava me recolher para ficar sozinho ou adotar uma postura de menos toque e troca corporal. A desaprovação e a solidão eram sensações que potencializavam o terror de estar com minha sombra e minhas fragilidades, e assim eu me mantinha constantemente poroso ao outro, para me sentir protegido. Entretanto, à medida que eu me relaciono de forma cada vez mais íntima com a Consciência Maior, na forma da Entidade Mais Amada para mim, mais esse espaço interno fica confortável, e consigo preservar momentos de silêncio e solitude, nutrindo-me, inclusive, da minha vulnerabilidade. E à medida que percebo de forma mais clara que não sou essencial para o outro, e que é o Amado Interno de cada um que trará o preenchimento e os resultados desejados, eu consigo aceitar não ter que abrir todos os meus poros para servir e me relacionar constantemente, como se o outro fosse inevitavelmente se corromper, perder-se ou sofrer se eu não estiver presente. Isso traz, junto, uma profunda segurança nas pessoas, na vida e em nosso destino, e um profundo relaxamento, por só precisar dar conta daquilo que é meu, daquilo que meu coração pede agora – e não mais.

 

  1. Sustentar a troca amorosa: como contraponto da percepção interior, ficou claro que a estratégia oposta e complementar para evitar a dor da vulnerabilidade, é ficar no conforto do meu espaço interno, num lugar em que o toque físico e a troca são considerados invasivos, imaturos ou desnecessários. Como estar no próprio espaço pode ser muito gostoso, como quando moramos sozinho e nos acostumamos a ter tudo de nosso jeito, existe um lugar que se torna intolerante às trocas. Minha percepção é que o prazer interno gerado pelo silêncio e pela solitude é, entre outras coisas, um prazer narcísico, e como não desejamos sair do prazer, nos protegemos do que pode ferir o espelho. Foi interessante, pois essa percepção surgiu à medida que eu me via adotando o comportamento mais discreto que vivenciei em alguns grupos e culturas com os quais tive contato, no Brasil e durante essa viagem, e percebia a luz desse comportamento (que levou ao insight acima) e, também, a sua sombra, que sinto que emerge quando ele deixa de ser uma escolha e passa ser uma imposição interna ou cultural.

 

O que senti em mim, e que também ajudou a clarear o que parcialmente me incomodava nesse comportamento, é que, se por um lado, há uma sensação de sutileza e conforto em estar no próprio espaço, pode existir também maior intolerância e julgamento ao desconhecido que pode surgir da interação, fazendo com que exista um sabor depreciativo, às vezes muito sutil e implícito, na relação com o que está fora. Seja numa versão mais espiritual, que passa a julgar ou condenar, ainda que muito sorrateiramente, o “mundano”, seja numa versão mais mundana, que expressa irritações com os outros e com como as coisas são feitas pelos outros.

 

O mundo e outro jamais serão capazes de dar contorno necessário para que possamos descansar para sempre em nosso espaço interno, e isso gera muita frustração. Como consequência, alguns de nós criam e se escondem em claustros pessoais (nossas casas, nossas vidas íntimas impenetráveis, nossas práticas espirituais solitárias, nossa vida social restrita) e coletivos (nossos clubes, comunidades fechadas, entre outros). Lembrando que não necessariamente a escolha da solitude ou de viver mais recluso venha desse lugar, mas, em alguns casos, esse pode ser o fundamento basal desse tipo de escolha.

 

Mas, abrindo mão desse conforto e do prazer que ele traz, para encarar as informações geradas pela troca – espirituais, mundanas, dolorosas, prazerosas, não importa – como bem vindas e como fonte de expansão do coração, a troca física e emocional passa a ser também bem vinda, junto com toda a vulnerabilidade que ela causa. Ao viver de forma mais plena essa dicotomia – da solitude e da troca amorosa – percebi, junto com minha decisão de me preservar mais, a minha intenção clara de sustentar o toque, o abraço e a conversa profunda e íntima sobre qualquer tema, em qualquer contexto – tomando o cuidado, claro, de dialogar com culturas que sejam diferentes, e não de invadi-las ou julgá-las. Não se trata de querer mudar o outro, mas de sustentar o que é importante para mim.

 

  1. Usar o poder para contribuir, e não para exigir: lembro-me de alguns momentos durante minha estada num hotel nas Filipinas, já no final da viagem, cujo objetivo era apenas relaxar e me divertir. Por isso, dei-me o presente de escolher um lugar onde eu pudesse ter todos os confortos que eu queria. E assim que o lugar começou a frustrar minhas expectativas: o telefone quebrado, a internet que não funcionava, a comida que não veio do jeito que pedi, eu logo me vi na posição do cliente exigente, duro e reclamão. Porque, claro, eu estava pagando, então eu tinha direito. E esse lugar me mostrou de forma muito pungente como o poder pode despertar meu lado tirano, que deseja que todos sirvam minhas necessidades e não exponham minhas fragilidades.

 

Ficou claro que um lado meu topava servir quando eu estava sendo pago ou fazendo trabalho voluntário. Pois no trabalho voluntário há a compaixão, e no trabalho pago há o compromisso com entregar o melhor para o cliente. Mas se eu estou pagando, quem tem as regras do jogo sou eu. Que história é essa de me contrariar? Se eu estou pagando, eu não tenho que ajudar ou ser bonzinho – eu tenho que ser ajudado. Os outros têm de ser bons comigo. Hora da revanche! Eu não tenho que passar por cima de alguns limites pessoais para servir os outros? Eu não tive que baixar minha cabeça para atender necessidades dos outros? Pois agora é a vez dos outros fazerem isso por mim!

 

E, dessa percepção verdadeira e dolorosa, veio a realização clara de que, sim, eu estou aqui para servir, em todo momento, em todo lugar. Mesmo quando isso me faz sentir vulnerável. Mesmo quando estou pagando. Mesmo quando eu tenho poder. Mesmo quando a bola está comigo. Não importa quão poderoso eu seja: eu não estou aqui para abafar os erros e as fragilidades, e sim para jogar luz sobre elas, para que possamos criar um mundo mais belo e feliz a cada segundo. E isso implica sustentar a minha força amorosa como agende de transformação do mundo, de sustentar essa força perante a vulnerabilidade minha e do mundo, e, também, de atender cada vez mais minhas necessidades – mesmo quando estou servindo voluntária ou remuneradamente – para que não haja nada a ser pago depois. Nenhuma vingança oculta. Usar o poder para contribuir, e não para exigir. E foi isso que fez com que, no final, eu conseguisse dar os feedbacks que precisava de uma forma que criou conexão com os funcionários do hotel. Senti que saímos com brilhos nos olhos de nossa breve, mas significativa, interação. E agora quero mais disso.

 

  1. Sustentar e desenvolver minha força física e energética: já há algum tempo venho falando, em diversos contextos, sobre sustentar o ponto basal de nossa consciência em pontos mais sutis e expansivos, como o coração. Isso significa buscar fazer com que, literalmente, cada pensamento e emoção sejam sentidos, fisicamente, na altura do coração. Não se trata de reprimir ou negar os demais sentimentos e pensamentos, mas de reconhecer que sempre estamos olhando as coisas por algum filtro. Podemos aceitar nossa sombra, nosso ódio e nosso medo a partir do filtro do amor, tanto quanto podemos receber o amor a partir do filtro do ódio. Justamente, quanto mais sutil e expansivo o ponto basal, mais dentro dele cabem todos os tipos de sentimentos e emoções. Os pontos basais mais sutis não temem nada, e conseguem aceitar incondicionalmente e transmutar todos os aspectos de nossa personalidade. Isso é o que eu já sabia. Agora, percebi também a necessidade de desenvolver um tônus físico e energético para sustentar esse ponto basal em mais situações, em especial em contextos mais associados à energia masculina.

 

A luta pela sobrevivência física, a guerra, a tirania, a repressão, a tortura física, mental, emocional e espiritual, para dar alguns exemplos, fazem parte do drama humano, em especial no aspecto do masculino desequilibrado e, em vez de fugir dessas grandes fontes de vulnerabilidade, quero me sentir cada vez mais seguro para abraça-las e contribuir para transmuta-las. E essa viagem me deu muitos exemplos disso, pois tanto no Haiti, quanto nas Filipinas, entrei em contato com pessoas e povos que precisam se readequar e escrever uma nova história a partir de calamidades muito graves, como terremotos, tufões e ditaduras violentas e sanguinárias. Impossível abraçar essas histórias e recriá-las de forma positiva e empoderadora sem sustentar profundamente a força do coração.

 

E eu percebi que se, por um lado, não quero desenvolver um complexo contrafóbico de mártir, de me lançar em situações perigosas, por outro eu não quero viver como se eu fosse apenas meu “eu individual”: eu sou o mundo todo. Negar ou se abster do que está acontecendo no mundo é fechar os olhos não para o que está “acontecendo lá fora”, mas para uma parte de mim. É deixar de me conhecer. E sinto que meu jeito de me conhecer e me engajar com o que descubro não vem tanto pela leitura dos jornais e pelo debate filosófico e macropolítico – ele vem, principalmente, por interagir e cocriar com as diversas partes de mim mesmo – as diversas partes do mundo. Para isso, preciso aumentar minha capacidade física e energética de ser, lutar e empreender, a partir do coração. Até mesmo para lidar com coisas menores, mas ainda assim significativas, no meu processo de lidar com minha vulnerabilidade, como o medo de morrer sozinho numa viagem de avião ou de não conseguir sustentar meu tônus como homem perante as mulheres e outros homens.

 

  1. Abraçar e expressar a minha sensualidade e a sensualidade da vida:como garoto que cresceu com uma deficiência física, que tornava minha fala incompreensível e minha aparência pouco atraente, cresci negando a sexualidade e a sensualidade plena na minha vida, pois tocar nesses pontos me deixava extremamente vulnerável. Aos poucos, fui curando a conexão e a expressão da sexualidade, mas só nessa viagem percebi o quão profundamente eu negava minha sensualidade. Sensualidade, aqui, entendida em seu aspecto amplo: a física, que gera confiança para se embelezar, vestir-se, tatuar-se e se enfeitar para expressar o prazer com o próprio corpo e com a própria aparência; a sexual, que gera empoderamento e conforto com a sedução e a capacidade de ter prazer com as mulheres que considero mais atraentes para mim, culminando na relação plenamente sensual com minha esposa a partir de um lugar de atração plena, e não de gratidão por alguém se sentir atraído por mim; a social, fazendo tudo que faço de forma poética, inspiradora e prazerosa; e a espiritual, assumindo mais o aspecto Amado-Amante na relação com Deus, descrito por tantos santos místicos, como São João da Cruz, que em seu clássico “A Noite Escura da Alma” diz, para expressar sua relação de amor com o Divino: “o meu amado beijou o meio seio”. É viver a vida como se, com cada gesto – do trabalho que faço, à comida que como, ao amor que compartilho com minha esposa – eu estivesse me preparando para a grande noite de núpcias com meu Amor Maior. Como se cada sorriso fosse o perfume que coloco para Ele. Cada ato de bondade, a melhor roupa. Cada momento de felicidade, o banquete que preparo para nosso jantar.

 

  1. Abraçar o guerreiro que mora em mim: li uma vez no incrível livro “João de Ferro” que, em algumas culturas, antes de usar a espada o homem precisa aprender a dançar. Logo, junto com a percepção da necessidade de desenvolver minha força física e energética e de abraçar e expressar a sensualidade, nasce a garra para ser e viver o meu guerreiro. Um guerreiro forte, assertivo e luminoso, que não tem medo de desagradar, que deixa suas crenças e posições claras, mas que não faz isso com complexo de superioridade, imposição, ou julgando e reprimindo o outro. Faz com o coração e o olhar limpos, com a certeza de estar construindo o que é importante para si e para o outro, e aberto para se deixar tocar, aprender e refazer suas certezas, a partir do que a vida traz. Antes, o medo era de que meu guerreiro despertasse uma fúria (de Deus ou dos outros) que me destruísse, e a estratégia, portanto, era ou negar e abrir mão desse guerreiro ou expressá-lo de forma violenta. Agora, quero deixar ele se expressar e aprender com ele, com como ele pode ser cada vez mais veículo de amor e luz, mesmo que eu tropece um pouco até estar mais apropriado dele. Isso está me fazendo com que, desde já, eu assuma com firmeza posições que, antes, eu titubeava para afirmar.

 

Todos esses insights, juntos, tornaram claro para mim o quanto meu movimento, agora, é de fazer o que faço, assumindo a força do meu coração. Uma força que é muito poderosa, e também muito amorosa. E que é essa força que vai potencializar o que já está aqui, o que já estou fazendo, e que apenas estava precisando de mais espaço. Não para eu poder ser maior, mas para poder ser pleno. Para poder cumprir o destino que me colocou aqui, e dar vazão, por inteiro, ao desejo de iluminar meu espaço interno e servir o mundo. Que venham os próximos passos da jornada!