Sobre meu (nosso) privilégio como branco

Esse texto é uma reflexão minha (Gustavo Prudente), que busca convidar outros brancos para refletirmos juntos. Está dividido em 04 partes e está sendo publicado, de início, inteiro, e, em seguida, cada uma das quatro partes, com link direcionando para o texto inteiro. Agradeço às provocações e à revisão da amiga Caroline Hornos, e à leitura crítica de quatro queridos amigos que estão “do outro lado” deste privilégio: Daniela Damiati, Dimas Reis, Josane Miranda e Supriya Ramos.

 

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               O despertar (parte 1 de 04)

 

No último ano, devido a uma série de sincronicidades, e de um bem-vindo empurrão da minha amiga Caroline Hornos, venho me reconhecendo (parece óbvio, mas é verdade) branco. E, com isso, olhado para tudo que minha branquitude representa para mim e para meu entorno. Em especial, tenho olhado para como essa branquitude afeta quem, como eu, é branco – e quem não é.

 

Não tem sido fácil me reconhecer branco. Muito longe de ser o despertar para um talento ou uma vocação esquecidos, que, quando relembrados, geram emoções de um delicioso encontro. Tem sido, pelo contrário, mais como no filme O Show de Truman – a sensação de despertar para o fato de que a minha vida confortável e feliz tem suas estruturas em um sistema, para dizer o mínimo, cruel.

 

Para começar, já é difícil falar sobre branquitude sem fazer dessa fala um ato constrangedor em si mesmo. Pois, a questão central da branquitude hoje (e já há vários séculos) é a cristalização de um privilégio estrutural e, para muitas de nós (brancos) inconsciente – e, mais que isso, que colocamos num lugar de negação absoluta. E, um dos aspectos desse privilégio é a capacidade que nós temos de nos colocar sempre como protagonista da história.

 

O sofrimento e a opressão da população negra, e a sua resistência e re-existência, é um tema muito mais relevante para a história do país, nesse momento, do que meu sofrimento em me reconhecer branco e parte de uma estrutura opressora. Mas justamente porque faço parte do círculo de privilégio, um texto meu, se bem escrito e argumentando, fazendo a minha “mea culpa” branca, pode gerar mais ibope e ser mais celebrado do que dezenas de textos escritos por negros sobre sua condição ou sobre sua luta. Eu poderia, com o correto merchandising (como já acontece com várias celebridades brancas) virar mais um “herói branco antiracismo”. O que, certamente, já me encheu os olhos em outros tempos. Hoje, eu acharia profundamente constrangedor.

 

Então, por que falar sobre minha branquitude? Como uma tentativa (se bem sucedida, não sei) de começar a “abrir a porta por dentro”, como me sugeriu minha amiga Caroline. Isso significa, em resumo, olhar para o próprio rabo. Não fazer como alguns de nós, brancos, fazemos (eu, certamente, já fiz), tentando serem os gentis salvadores dos outros – fazendo projetos sociais em comunidades pobres ou campanhas publicitárias antirracismo – mas para nos olhar como aqueles que precisam de ajuda.

 

Que tipo de ajuda?

 

Usarei as palavras do filósofo indiano P.R. Sarkar: “Pessoas dogmáticas e presas à tradição não ouvem a razão. Elas precisam ser golpeadas. (…). Os golpes devem ser desferidos com um martelo. Doces evangelhos não surtirão efeitos” (Os Pensamentos de P.R. Sarkar, Ananda Marga Publicações).

 

Palavras fortes, mas que, para mim, explicam o tom duro em relação a nós, brancos, que tenho encontrado em muitas páginas e textos de autoria de ativistas do movimento negro, que comecei a seguir e ler. Muitas vezes precisei respirar fundo para seguir em frente na leitura, e não reagir com respostas emocionais ou supostamente bem fundamentadas pela lógica. E, cada vez que fiz isso, passada a fúria do ego ferido, vinha a voz interna dizendo: “eles têm razão”. E sou eu quem preciso de ajuda para acordar do meu dogmatismo e tradicionalismo branco para, em vez de reagir, validar esses discursos e ações. E parar de gerar resistência a algo que nem tem como ser impedido: o processo cada vez mais forte e veloz dos negros desse país (e do mundo) ocuparem o seu verdadeiro lugar de poder e merecimento.

 

Quando digo “eles têm razão”, não estou me referindo a uma massa homogênea de pessoas negras que pensam igual sobre si mesmos e sobre nós, brancos. Existe um espectro (do que vi até agora) bem amplo de posições. Mas, dentro dessa diversidade, eu vi pouca coisa que, tirado o véu do meu orgulho, não me parecesse justificada. Até mesmo expressões que alguns ativistas usam, em que somos chamados de “palmitos”, por exemplo, exigem que eu simplesmente silencie, receba e ouça. Por quê?

 

Como eu, nem nenhum antepassado meu, passou pelo que o povo negro passou na história desse país, a forma que consegui para sair do meu orgulho foi a seguinte. Imaginei-me acabando de saber que a minha casa havia explodido, e que minha família havia morrido e eu havia perdido tudo. Uma pessoa vem conversar comigo e eu, claro, estou desesperado. Expressando-me como posso, essa pessoa vem até mim e diz: “olha, se você não falar de forma clara e calma, eu não vou conseguir ouvir você, pois estou me sentindo agredido”.

 

A reação da tal pessoa, claro, pareceu-me ridícula. Mas aí eu fui mais longe: imaginei-me numa situação em que aquela não era primeira vez que isso acontecia. Que, na verdade, outros lares meus já haviam sido explodidos, bem como de amigos e familiares meus. A reação do meu interlocutor imaginário pareceu-me, claro, ainda mais absurda. Como exigir de mim “compostura” numa situação dessas?

 

Mas aí adicionei um último elemento: o fato de que aquele interlocutor, ou ainda sua família, seus amigos ou pessoas ligadas a ele tivessem relação direta com aquelas explosões. Aí, além do absurdo da pessoa me exigir calma, me veio uma fúria enorme em relação a ele. E, claro, um desejo de expressar minha raiva e minha dor da forma como elas estivesse presentes naquele momento, e de exigir reparação ao dano causado – da minha forma, e não da forma que ele achasse mais “correta”. Não, eu não tenho como ficar calmo, e quem é você para dizer que meu discurso é válido só se eu o comunicar da forma que você quer?

 

Pois é, e aí eu cai na realidade de que mesmo esse meu exemplo, já tão absurdo, está a anos luz da gravidade do que o povo negro sofreu nesse país. Foram muitas mortes, estupros, opressões, negação de participação na vida social, cultural e política, para citar o mínimo. E, sim, tudo isso tem a ver com nós, brancos, diretamente. E sim, somos nós que estamos exigindo coisas absurdas para que a gente legitime o discurso e a luta deles, do tipo:

 

  • Para que cotas? Vençam pelo seu próprio mérito.

 

  • As oportunidades de carreira estão aí. Se não estão crescendo, é porque não querem, são preguiçosos ou estão de “mi-mi-mi”.

 

  • Esse discurso de vocês contra nós, brancos, é agressivo e é um “racismo inverso” – venham com paz, amor e racionalidade que a gente escuta vocês.

 

  • No Brasil não existe racismo – somos misturados, iguais e todos convivem bem uns com os outros.

 

  • Não estão vendo as campanhas publicitárias, memes e programas de TV colocando negro e branco lado a lado? Estamos todos nos esforçando para mostrar que somos todos iguais. Vocês que deveriam começar a agir como se fôssemos todos “irmãos”.

 

Para citar alguns argumentos que, para mim, não fazem mais sentido.

Sim, o povo negro tem direito de gritar sua dor e sua fúria contra nós. Sim, têm direito de afirmar quem são, como grupo, como etnia, e não entrar no mito da “igualdade”. Sim, podem ocupar seu lugar sem nos pedir permissão. Sem esperar que a gente tenha tempo de raciocinar e sentir se o processo está sendo suave, delicado e paz e amor como a gente gostaria. E, principalmente, eles têm direito não porque a gente está dando esse direito a eles. Eles têm direito, ponto.

Então, sim, nós precisamos de ajuda. Basicamente, para olhar de frente para nossa própria raiva e fúria (e não apontar a deles). A nossa, no caso, expressa-se certamente de formas bem explícitas, na violência das palavras e das agressões, e tantas outras vezes implicitamente na violência da estrutura social e cultural, em que lugares de poder já estão pré-determinados. E ainda mais sutilmente entre os brancos que, como eu, sempre se consideraram “não racistas”, na forma da imposição de um mito de não racismo sustentando unicamente pelo fato de nós nos relacionarmos com negros, apreciarmos a sua cultura e não os ofendermos. E, a partir daí, considerar “exagerado” e “agressivo” quem, mesmo assim, reclama.

Precisamos de ajuda, portanto, para nos colocarmos em nosso lugar. E quem tem de se ajudar somos nós mesmo, pois o povo negro precisa estar ocupado (com razão) com sua própria luta, e não em nos ensinar ou nos salvar (como nós insistimos em fazer com eles).

 

Somos racistas, e não somos iguais (parte 02 de 04)

Tudo que descrevi no item anterior (“Despertar”) é o resumo de várias (mas, diante do tamanho do assunto, ainda poucas) leituras, conversas e reflexões. Para mim, ainda está muito confuso, apesar de algumas fichas caindo. E se também estiver para você, aqui estão alguns lembretes que eu tenho me feito, para refletir sobre minha branquitude, a partir do que já li e digeri:

  • Racismo é estrutural social, e não ofensa verbal: se eventualmente formos chamados de “palmito”, isso não vai fazer que tenhamos menos chance na faculdade, numa vaga de trabalho ou que sejamos barrados num evento. Mesmo que a gente não use palavras ofensivas a pessoas de outras etnias, muitas delas (como os negros e os índios) ainda assim têm mais portas fechadas que nós, e nós nos aproveitamos e lucramos com essa vantagem, mesmo que intencionalmente a gente não queira.

 

Por isso, sim, a branquitude necessariamente é (nesse momento da história) racista. Mesmo quem, como eu, até agora não se via como racista por dados como ter amigo ou companheiro amoroso negro, ou circular em ambientes de cultura negra, e sempre defender o discurso do anti-racismo. E, não, não existe racismo reverso. Pois mesmo quem é branco e pobre tem mais privilégios sociais que os negros na sua mesma condição. E deixa de sofrer constrangimentos que mesmo negros ricos sofrem. O que pode existir, eventualmente, é outra etnia nos ofendendo verbalmente – até fisicamente. Pode ser agressivo. Mas não é racista.

 

  • A igualdade pode ser uma palavra traiçoeira: claro que todos queremos igualdade, mas como diria o antropólogo Boaventura Santos, “prefiro a igualdade quando a diferença inferioriza, e a diferença quando a igualdade descaracteriza”. Em nossa estrutura social racista, imagens de brancos e negros convivendo, mãos branca e negra dadas em união, em campanhas publicitárias, novelas e memes de redes sociais, servem para aliviar a nossa consciência branca, para que durmamos à noite emocionados, achando que algo de fato está sendo feito.

 

É como achar que se está salvando o mundo simplesmente por separar o lixo ou não usar sacola plástica. O buraco, como bem sabem os ambientalistas de verdade, é muito mais embaixo. Acredite, quem ganha com essas mensagens de igualdade somos nós, brancos, e não as outras etnias. Igualdade acontece quando direitos e oportunidades são equânimes, e para que isso aconteça nós precisaríamos abrir mão de privilégios que, na hora da verdade, em geral não queremos mexer. Então, precisamos validar o movimento das outras etnias de se afirmarem como grupo, como diferentes, de explicitarem a desigualdade e de não quererem mascarar uma pretensa união – que, naquilo que realmente interessa, ainda está longe de existir. E, como parte dessa afirmação da diferença, lutar por direitos e oportunidades que, se conquistados, podem, talvez, caminhar para uma verdadeira “igualdade”.

 

  • O mito da igualdade nos protege: ao dizer “somos todos iguais”, estamos na verdade cooptando etnias com culturas e interesses diferentes dos nossos e os convencendo a pensar, querer e consumir os mesmos bens materiais e culturais que nós. Na real, o que estamos dizendo não é que somos iguais, mas sim que “vocês são iguais a nós”. Ao criar um mito de igualdade cuja “régua” é branca, quem precisa correr atrás para ser igual são eles – não nós. Não tem ninguém correndo (ao menos, não em larga escala) para ser mais africano, mais índio, seja no padrão estético e cultural, e quem dirá na política, na economia etc.

 

Nessa cultura dos iguais, nós, brancos, ganhamos um grande mercado consumidor em potencial. Apesar de estarmos em minoria (45,5% da população, segundo pesquisa do IBGE de 2014, sem descontar aí os descendentes de negros que se afirmam como pardos ou brancos pelo racismo intrínseco), somos 79% dos 1% mais ricos.

Já imaginou se não acreditássemos no mito da igualdade? De repente, nós nos veríamos como minoria, e os negros (contando aí os “pardos”, que na verdade são negros descendentes do processo de “embranquecimento” intencionalmente feito no Brasil,  e os as pessoas que se consideram “brancos” por não reconhecerem sua negritude etc), seriam maioria. E aí o bicho ia pegar para nós. Nossa segurança depende que uma massa negra acredite que ela faz parte de um grande grupo “homogêneo e igual”, que protege os 79% dos 1% mais ricos que, do contrário, estariam em maus lençóis.

Assumir que não somos iguais, que somos um GRUPO BRANCO, e que esse grupo é MINORIA, é assustador (para nós). E extremamente importante para a gente, bem… se colocar em nosso lugar. Faça o exercício de se imaginar como minoria perante uma maioria negra, sem a proteção do mito da igualdade, sem que eles tenham qualquer desejo de “ser como nós”. Um grupo grande, empoderado de si mesmo, sem qualquer motivo que os faça se ajoelhar perante nós. Preparado para viver e prosperar sem a nossa permissão ou ajuda. Ousaria dizer que o tom do nosso discurso ia se tornar, no mínimo, mais humilde.

 

Precisamos assumir a branquitude (parte 03 de 04)

 

Continuando os lembretes iniciados no item “Somos racistas e não somos iguais”:

  • Temos uma cultura branca, e precisamos assumi-la: ainda parte do mito da igualdade, o que chamamos de “igual” é, muitas vezes, a cultura branca estendida e generalizada como cultura, ponto. Não é. Uma grande parte do que chamamos de cultura, ou mesmo de cultura brasileira, é cultura branca – europeia e americana, importada de agora ou que descende de nossa colonização.

E aqui não estou falando tanto de música, comida etc (mas isso também se aplica aqui). Estou falando do nosso jeito de pensar, sentir e agir. De nossos contratos sociais. Das estruturas de poder de nossas relações. Do que considerados valoroso ou não. Apenas assista a alguns filmes ou leia alguns livros sobre a cultura de diferentes povos da África. Não precisa muito para ver que existem formas de se movimentar, de se organizar socialmente e politicamente, radicalmente diferentes das nossas. Agora leia a história da Europa e dos Estados Unidos. Você vai identificar muita coisa da nossa forma de se organizar como povo. Por que? Porque entre nós, ainda predomina a cultura branca. Ponto.

Isso já está muito claro no campo espiritual: os ataques às religiões de matriz africana não são só explícitos, como na invasão de um terreiro que aconteceu agora em 2017. São, também, mais sutis. Na minha experiência pessoal, sempre ouvi mais respeito à umbanda, que tem mais influência branca, que ao candomblé, que se mantém sem sincretismo com as tradições religiosas brancas. Nada contra a umbanda (pelo contrário, pois o que conheço me encanta), mas sim contra o olhar racista de quem não é nem da Umbanda, nem do Candomblé, mas tende a aceitar mais algo que tem “mistura branca” do que algo que se mantém prioritariamente negro. Além disso, quantas vezes já não senti, nos meios espirituais classe média do qual participo (onde predomina Yoga, xamanismo dos índios norte-americano, vertentes cristãs místicas como a Antroposofia, a maioria esmagadora liderada e frequentada principalmente por brancos), um racismo bem sutil, que dá a entender que as matrizes espirituais africanas são mais “densas” – que, bem traduzido, significa, mais “atrasadas” espiritualmente.

Isso, claro, não vem de todos e nem pode ser generalizado – até porque participo de muitos desses caminhos, e admiro muita gente ligada a eles. Entretanto, esse tipo de postura já chegou até mim de forma não apenas pontual (e eu mesmo já expressei ele), mas de forma repetida, o que me fez sentir que existe, numa parte desses grupos, um racismo talvez inconsciente, mas bem presente.

Podemos, às vezes, ficar ofendidos quando um outro grupo étnico critica agressivamente coisas que, para nós, brancos, são bens culturais importantes. Quantas vezes já vi, no meu círculo, brancos irritados ao terem suas vertentes espirituais criticadas! É como se estivessem cuspindo no próprio prato, pois nossa branquitude insiste que os caminhos que escolhemos são universais, inclusivos – então por que criticá-los? Mas ao criticar ou até rejeitar esses bens importantes para nós, o que me parece que estão fazendo é afirmar: esta cultura é sua (ou predominantemente sua), não minha. Só que na nossa síndrome de protagonista, a gente já parte do pressuposto que não tem uma cultura branca. Existe uma cultura, ou uma cultura brasileira. E se alguém a critica, é porque essa pessoa deve ser ingrata ou sem noção, pois está rejeitando ou negando “a cultura”. Só que é a cultura branca.

Podemos não assumir que existe uma cultura branca. Mas existe. Ela está aí. A gente só não nomeou assim, ponto por ponto. E isso, também, pode ser assustador. Mas importantíssimo para a gente se ver no espelho, com toda a nossa beleza e nosso horror.

 

  • Ao respeitar a nossa cultura, respeitamos também a dos outros: respeitar nossa cultura não é nem assumir que somos “ruins”, e aí querer “emular” outras culturas (ser um branco imitação de hindu, rastafári, indígena etc), nem assumir que somos melhores e querer que todo mundo seja como nós. É como quando fazemos terapia e aceitamos nossas potências e nossas limitações, e, com isso, passamos a honrar a potência alheia e aceitar as limitações dos outros também.

Li alguns textos criticando a apropriação cultural que nós, brancos, fazemos da cultura negra, usando elementos dessa cultura (como dreads nos cabelos) como se tivéssemos passe livre para usar os bens culturais alheios. Eu, na verdade, achei esse conceito bem libertador, pois eu sempre achei esquisito – e, intuitivamente, me recusei – a, por exemplo, “ser do hip hop” para me sentir parte de grupos com quem interagia quando trabalhei como educador social. Sempre me achei mais íntegro deixando que pontes e conflitos surgissem da cultura de cada um, para que ambos os lados crescessem.

E, nesse sentido, eu admiro muitos dos vários elementos das culturas de outras etnias – e consumo esses bens (como música, filme, e até itens de decoração, vestuário etc), bem como me nutro espiritualmente de elementos simbólicos das matrizes africanas e asiáticas, mas a verdade é que minha identificação, em termos de música, roupa, imaginário simbólico etc, está muito mais ligada à cultura branca e europeia da qual eu descendo. Inclusive, mesmo sendo praticante do Yoga há mais de 10 anos, nunca tive paixão por elementos da cultura hindu, nem um sonho intenso de ir para a Índia. Até tentei me forçar a isso por um tempo, mas não rolou. Eu tenho muito mais ligação histórica, confesso, com a Europa que com a Ásia ou a África.

É claro que pessoas de uma cultura podem “se identificar” com elementos de outra cultura, e até se ver mais nessa outra cultura que na sua de origem. É assim que a verdadeira mistura cultural (e não a eugenia, como aconteceu aqui no Brasil e em outros países) acontece. Sempre vão haver os que mergulham tanto numa outra cultura que ela vira mais sua que a sua de origem. Mas isso talvez seja algo que acontece com uma minoria, e quando se dá, é num processo em que quem está vindo de fora pede muita licença, e toma bastante tempo para se aprofundar verdadeiramente na cultura que está entrando. Não é um passe livre como nós, brancos, muitas vezes nos damos em relação à cultura alheia, fazendo mosaicos de elementos importantes dessas culturas e nos considerando entendidos nelas porque dominamos um ou outro código cultural.

Além disso, o processo de apropriação carrega um problema (histórico) mais grave: muitos desses elementos culturais de outras culturas permanecem como marginais, até que a cultura branca se aproprie deles. Quando os dreads dos cabelos negros se tornam “cool” quando usado por brancos, assim como brincos masculinos se tornaram moda depois que foram adotados por heterossexuais, o que existe é não só uma apropriação do bem em si, mas também do seu valor simbólico e social. E se nós, brancos, não lutamos para que os bens culturais dos outros povos sejam valorizados como bens DELES, estamos reproduzindo, mais uma vez, a estrutura racista.

Acredite, assumirmo-nos brancos passa pela dor de enxergar nossa cultura de opressão e violência. Mas, também, de assumir sem constrangimento outros bens culturais incríveis próprios de nossa cultura. E, assim, respeitar à cultura alheia, como algo de quem se aproxima com um senso de cuidado, tempo e de honra ao sagrado alheio (como na história do Pequeno Príncipe se aproximando da raposa). Vale a pena.

 

  • É preciso assumir o sobrenome “branco”: assim como generalizamos cultura branca como “cultura”, fazemos isso com outras coisas. Por exemplo, filme branco é filme. Filme negro é filme negro. Balada onde predomina negros é balada negra. Balada onde predomina brancos é balada. O problema de não assumir o nosso sobrenome branco é fingir que os ambientes dominamos por nós são ambientes plurais, democráticos ou onde todos são iguais – quando não são. E, a partir desse fingimento, não fazer nada para mudar as estruturas racistas.

 

Dei-me conta disso recentemente e, acredito, só o fato de eu assumir para mim mesmo que os cursos e coachings que eu dou são cursos e coachings BRANCOS, já ampliou minha consciência e meu ímpeto para a ação. Sim, eu tenho e tive alguns clientes negros, mas são esmagadora minoria.

 

E “ação” não significa necessariamente ficar procurando “preencher” minha lista de clientes para mostrar para os outros que eu apoio a diversidade. Trata-se de uma reflexão mais profunda, tanto sobre o que faz que meu trabalho seja predominante atrativo ou acessível para brancos, quanto sobre o que é que eu devo buscar: fazer com que meus cursos sejam mais “misturados”, ou assumir a natureza branca do meu trabalho, mas apoiar, da forma que me for possível (e que me for autorizado) o fortalecimento de trabalhos de autoria e destinados para outras etnias? Ou ambas as coisas?

 

Não sei ainda, pois é uma reflexão muito recente, e gostaria de ouvir mais vozes (de diferentes grupos) sobre isso, antes de assumir uma posição sobre o assunto.

 

Precisamos dar o passo a frente! (parte 04 de 04)

 

Tudo que venho refletido, e que expressei nos itens anteriores, me fazem querer dar o passo a frente. E fazer isso é bem mais do que simplesmente não ofender alguém por sua cor ou ter um amigo negro. É certamente muito mais do que querer “ajudar” quem é de outro grupo étnico. É mudar de dentro. É enfrentar o desconforto de bater de frente com aquele familiar que age e fala de modo a perpetuar o racismo. E assumir o próprio papel na manutenção da estrutura social racista. É respirar com humildade perante o levante (mesmo que nos pareça agressivo) dos outros grupos, sem resistir, sem rebater. É abrir espaço – tanto interno (nas crenças), quando nas escolas, nas faculdades, nos postos de trabalho. É pagar bem. É aceitar lucrar menos.

É conter nosso impulso protagonista e não atropelar – e inclusive apoiar – o protagonismo alheio. É aceitar – e inclusive buscar – ser liderado por líderes de outras etnias, seja na política, nas empresas, nas comunidades espirituais, nos movimentos de bairro, nas lutas e projetos sociais. Não querer sempre liderar. É sentar para falarmos sobre nós, brancos. Que cultura temos hoje e que cultura queremos ter para ter uma convivência harmônica e equânime com os outros grupos, sem pieguices e ingenuidades de campanha de fim de ano com uma maioria (ou totalidade) de celebridades brancas chorando pela igualdade, ou compartilhando textos em redes sociais sobre como somos todos irmãos.

E eis duas sugestões de primeiros passos que estou buscando praticar:

  • Comecemos fazendo o “teste do pescoço”: não conhecia essa expressão, mas ela representa para mim o “constrangimento que acorda”. Significa, simplesmente, a gente começar a olhar ao nosso redor, nos meios que circulamos, e contar matemática e precisamente, quantos brancos e quantos negros (incluindo pardos) estão lá. E, desse grupo, quem está na posição de senhor (como cliente, consumidor, patrão) e quem está na posição de servo (como atendente, funcionário, servente).

 

Como eu disse, é constrangedor. Até mesmo para quem, como eu, já se achava moderninho. Comecei a fazer isso durante a gravidez da minha recém-nascida filha. Estava eu no consultório de dois médicos obstetras super incríveis e humanizados (de verdade, sem ironia). Os dois, brancos. Nós, brancos. Todas (todas) as fotos lindas de casais parindo naturalmente, colados no mural do consultório… de brancos.

 

Fomos ao hospital fazer uma manobra para virar a minha filha, que estava sentada (pélvica), o que dificulta o parto natural. Parei para observar o ambiente: quase todos (na verdade, coloco o quase para não ser injusto, mas no que vi, todos) os clientes e médicos (a alta hierarquia do hospital): brancos. Quase todos os atendentes e enfermeiros: negros (incluindo os “pardos”, ou negros de pele clara). E o pior: todos me atenderam super bem. Que constrangedor, eu saber que estava sendo tão bem atendido por pessoas que, em sua maioria, não poderiam pagar pelos mesmos serviços que estavam me prestando.

 

E a lista vai longe. Mas vou parar por aqui. Convido cada um a fazer o seu próprio “teste do pescoço”.

 

  • Precisamos estudar: antes de sairmos rebatendo ideias como a desse texto ou de caráter semelhante com respostas prontas, vamos estudar mais: sobre a história do povo branco e do povo negro; ler os livros, ver os vídeos e acompanhar as páginas de ativistas do movimento negro e dos brancos que estão refletindo sobre branquitude; entre outros. Eu recebi, por exemplo, uma lista de textos e vídeos sobre racismo, pela perspectiva de quem é negro, que adoraria repassar para a frente. Por isso, coloquei num link compartilhável do Google (https://tinyurl.com/racismo-links-estudo). Tenho, também, acompanhado regularmente as postagens no Facebook da filósofa Djamila Ribeiro e das páginas Nem Tenta Argumentar e Geledés. Além disso, há um grupo do Facebook de estudos sobre Branquitude, mas que não aceita homens cis (que é o meu caso), então não pude entrar, mas que é uma boa dica para quem puder. Mas, lembrando: é preciso ler tudo com a humildade de quem quer aprender, e de quem quer desarmar a própria bomba. Se não, o resultado vai ser reatividade e mais racismo.

 

E essas são apenas algumas das fichas que estão caindo para mim (e que talvez ainda vão mudar). Muitas outras, sei, cairão. Ainda estou sem saber como agir direito. Quero montar um grupo sobre branquitude – será que tenho pernas? Estou planejando eventos de diálogo sobre privilégio (não só branco, mas masculino, hetero etc). Será que consigo fazer algo legítimo, respeitoso, a partir do meu lugar de fala? Pergunto-me do que preciso abrir mão (em termos materiais, de estrutura de poder), para não reproduzir o racismo. Será que tenho coragem?

 

Mas quem sabe, à base de muito teste do pescoço, de ouvir com humildade o discurso de quem sempre foi oprimido pela branquitude, de não resistir às mudanças que esses grupos têm implementado, e de refletir com outras pessoas sobre quem somos e quem queremos ser como brancos, eu participe da mudança que já está acontecendo, pelo protagonismo negro e de outras etnias, de forma mais respeitosa, digna e, quem sabe, útil.

 

Se alguém quiser vir junto, vamos lá!