O Haiti é aqui, no meu coração

Quero agradecer a todas as pessoas que seguiram seu coração e que me inspiraram a também seguir o meu. Quero agradecer às pessoas que estão seguindo seu coração neste momento e que fortalecem a minha busca. E quero pedir, clamar, convocar a todas as pessoas que ainda não o fizeram que, por favor, sigam o seu coração, pois ele é um rio que nos leva por paisagens deslumbrantes e que, inevitavelmente, nos faz desaguar num oceano infinito de amor, felicidade e prosperidade.

 

A cada dia que passa, sinto que cada momento, cada conversa, cada experiência, tem um significado tão profundo para mim, que parece que estou constantemente no clímax do meu filme favorito. Estou me dando conta disto mais ainda depois desta experiência no Haiti, onde por diversos momentos do dia meus olhos marejaram de felicidade e eu senti um vazio pleno e profundo no meu coração.

 

Não é a felicidade de “estar fazendo o bem” num pais mais pobre que o meu. É a felicidade de ser eu mesmo e de poder servir ao momento presente, independente do que se apresente nele. Percebo que a mesma alegria que senti aqui é a mesma de quando eu estava sentado em salas de reunião de grandes empresas discutindo outras ações bem diferentes da que realizei esta semana, mas que estão recheadas da mesmo sabor de propósito, serviço e conexão com o Amor Maior.

 

Sinto que a felicidade de me sentir alguém que serve aos “mais necessitados” é uma felicidade passageira para mim e desempoderadora para o outro. Mas a alegria de criar níveis de conexão cada vez mais profundos com todos os seres – humanos ou não – em todos os momentos da minha vida, isso me enche de êxtase. E ver como esses momentos aos poucos vão se encaixando numa profunda teia de sentidos, que se liga à vida de outras pessoas – uma teia que não sou eu que está tecendo, mas para a qual eu contribuo como uma pérola – isso é realmente fascinante. É como uma grande dança que vai se formando quando cada um ocupa seu lugar na dança: existe o deslumbre de realizar o próprio passo, o de admirar o passo do outro e o de contemplar com fascínio o regente dessa surpreendente e belíssima coreografia.

 

Aqui também é a minha casa

 

A primeira sincronicidade que experimentei nesta viagem foi a de encontrar na fila para entrar no avião para Porto Príncipe, ainda em Miami, uma brasileira que mora e trabalha no Haiti. Foi muito curioso esse inesperado encontro e suas repercussões: sem saber, ela me deu uma informação chave para o curso que eu daria logo em seguir – cuidado com as traduções, pois a maior parte das pessoas não traduz exatamente o que você fala. E, de fato, estar alerto para isso me ajudou a perceber o momento em que precisei pedir reforços para que as pessoas realmente entendessem o que eu estava falando durante o curso.

 

Além disso, foi muito interessante perceber que sem os movimentos que fiz nos últimos meses para aprender francês, para poder interagir mais com a família da minha esposa, eu jamais poderia ter tido conversas significativas – embora rápidas, pois meu vocabulário ainda é pequeno – com as pessoas daqui. O creole tem uma influência bem importante do francês, que é, de fato, a língua oficial – embora seja falado por apenas 20% da população. De todo modo, meu parco francês me ajudou a compreender coisas importantes que estavam escritas ou que estavam sendo ditas, e me permitiu criar algumas conexões que não teriam sido possíveis com a tradução.

 

Outro presente foi conhecer meus anfitriões: Dharma (Demeter), diretor dos programas da AMURT – Haiti, originalmente da Bulgária, que mora no Haiti há 10 anos, e Daniel e Tasha, um casal de americanos que está lá há pouco mais de um mês, com a intenção de ficar. Certamente esse é um daqueles encontros que já estavam pré-marcados pela vida, como se antes de encarnar a gente tivesse dito um para outro: “então a gente se encontro no Haiti, no ano tal, na data tal, certo?”. Eu e Dharma, em especial, sentimos tanto amor um pelo outro que é como se já fôssemos grandes amigos há muito, muito tempo.

 

Todos os dias, enquanto ia para a sede da AMURT – Haiti para o treinamento, e via e ouvia os habitantes de Porto Príncipe, e depois, quando chegava lá e conversava, ria e me emocionava com as pessoas, eu comecei a sentir uma sensação de lar muito profunda, que tenho sentido em poucos lugares do mundo – especialmente fora do Brasil. Na minha última noite, por fim, quando eu e Dharma fomos encontrar Augusto, diretor de programas da Viva Rio, para um bate papo no restaurante super cool Cartier Latin (com ótimo reagge ao vivo, por sinal), entendi: ele me contou que Rubem, o fundador do Viva Rio, ao chegar no Haiti se apaixonou pelo lugar e as pessoas, e hoje esta organização é uma das poucas orginalmente brasileiras que faz trabalhos em outros países, e seu fundador, que pelo que entendi tem mais de 70 anos, tem energia suficiente para passar 15 dias no Brasil e 15 no Haiti. Enquanto ouvia Augusto, é como se naquele momento a vida estivesse dando um contorno para o que eu estava sentindo: o Haiti também é a minha casa.

 

Um país de contradições

 

A primeira coisa que me perturbou, antes mesmo de chegar no Haiti, foi que todas as pessoas que eu encontrei desde que pisei nos EUA, para quem eu contava que iria para lá, perguntavam-me: “você está indo fazer trabalho humanitário?”. E eu pensei: meu Deus, que triste sentir que esse país está tão machucado que a única motivação que as outras pessoas imaginam para viajar até lá é fazer o tal “trabalho humanitário”. Em outras palavras: gente rica ajudando gente pobre. E, de fato, eu estava indo lá para dar um curso para uma ONG, e não passear numa praia bonita. Isso me deu o que pensar.

 

Em segundo lugar, foi muito perturbador perceber, ao entrar no avião que levaria a Porto Príncipe, que além de alguns haitianos, a maior parte dos passageiros eram americanos, pessoas de língua francesa e outros estrangeiros como eu, todos com “cara” de que iam fazer trabalho humanitário. O mais perturbador, na verdade, foi ver um grupo de adolescentes americanos usando uma camisa escrito “Healing Haiti” (Curando o Haiti) e claramente acompanhados por instrutores. Foi muito estranho pensar que o sofrimento dos haitianos significa um trabalho de escola para alguns adolescentes americanos. Não que não seja bom que esses jovens tenham essa experiência – mas a lógica por trás dessa realidade é quase exasperante para mim

 

O Haiti experimenta um nível de desenvolvimento que existe em algumas partes do Brasil, mas que pessoalmente eu nunca vivi: a eletricidade é controlada – ricos, empresas, organizações governamentais e ONGs têm gerador próprio, mas a maios parte do país (mesmo em Porto Príncipe, que é a capital) só tem energia de uma certa hora da noite até uma certa hora da manhã. O sistema de água baseia-se em cisternas que são enchidas quando acabam – de vez em quando, não tem água para descarga, banho etc. As ruas têm um cheiro incômodo de gasolinas; das que eu vi, nenhuma tem farol, e muitas não são asfaltadas.

 

Assim como em lugares mais pobres do Brasil, as ruas são tomadas por gente vendendo frutas, verduras e comidas de todo o tipo, como frango frito e cachorro-quente, a 12 centavos de dólar cada um, em média. Daniel me explica que as salsichas são feitas com o pior tipo de sobra de carne, que os EUA exporta a um preço que parece barato, mas que garante um bom lucro. Porto Príncipe não tem um cinema sequer – o único que existia foi destruído pelo grande terremoto que assolou o país alguns anos atrás. Existem alguns restaurantes, como o Cartier Latin, e grandes supermercados, onde se encontra todo o tipo de produto – alguns da agricultura local e muitos outros importados. Nesses locais, bem aclimatados com ar condicionado, é onde a burguesia haitiana e os expatriados se encontram – é quase como se fosse o shopping local. Uma pessoa com quem conversei me diz que não sabe o que acontecerá quando acabar a missão da ONU no país, pois muitos expatriados irão embora e, com eles, uma parte significativa da população que esquenta o mercado de compras e aluguéis de Porto Príncipe.

 

Em outras conversas, fiquei sabendo que desde o terremoto o Haiti virou uma loucura para as organizações não governamentais. De repente, havia dinheiro para todo mundo: algumas ONGs aumentaram seu quadro de poucas dezenas para centenas, ou de poucas centenas para mais de mil. Milhões de dólares eram manejados por essas e outras organizações, e uma boa parte do trabalho era bem operacional: receber e distribuir alimentos e mantimentos. Numa certa altura, AMURT – Haiti resolveu não aceitar mais esse tipo de trabalho e focar no que faz melhor: desenvolvimento local. A rapidez com que o dinheiro entrou nesta época é proporcional à dificuldade que foi gerada depois, para demitir boa parte desses funcionários – a maioria haitianos, que não compreendiam porque agora não tinham mais os seus empregos. As verbas diminuíram, e com o passar do tempo, as coisas começaram a voltar à rotina.

 

O Haiti tem um presidente que, segundo algumas pessoas com quem conversei, é apenas uma marionete do governo dos Estados Unidos, que teria interesse em uma série de recursos naturais do país – aparentemente, uma grande reserva de gás natural foi descoberta recentemente, que seria bem maior que a da Venezuela. Daniel me conta que, curiosamente, a embaixada americana no Haiti é a quarta maior do mundo – algo que não parece proporcional à importância política e econômica do país no cenário internacional. Na minha última noite lá, de repente fomos pegos por um tráfico absurdo. Militares de aspecto duro, portando suas metralhadoras, ordenavam agressivamente por onde as pessoas deveriam seguir, seja a pé, de moto ou de carro. Primeiro, Daniel e Tasha acreditaram ser a equipe de de segurança de Bill Clinton, que vem constantemente ao país, mas depois descobrimos ser uma visita do presidente a um local próximo de onde estamos.

 

O local onde fiquei hospedado com Daniel, Tasha e Dharma chama-se Petion Ville, um dos bairros mais chiques da cidade – o que significa que lá estão as casas da pequena classe média e da classe alta do Haiti, bem como embaixadas, órgãos governamentais etc. É lá que moram a maior parte dos expatriados fazendo “trabalho humanitário” no país. Uma pessoa me contou que morar em Petion Ville é a única maneira para ter acesso a comodidades mínimas como luz e água. Lá também estão, pelo que entendi, os “mulatos”, que compõem uma boa parte da classe alta haitiana – negros um pouco mais claros, que surgiram da mistura entre os então escravos e os colonos franceses, que foram expulsos ainda no começo do século XIX. O Haiti foi, segundo as pessoas com quem conversei, a primeira nação independente das Américas, e seus heróis constam nas folhas da moeda local.

 

Muito embora a grande maioria da população fale creole, a língua oficial é o francês e essa língua que está em todos os materiais oficiais – nos avisos dos aviões, nos papéis oficiais do governo. Uma pessoa me contou que muitos haitianos, se alguém perguntar, não admitirão que não falam francês, pois a fluência na língua oficial é associada a status. Ainda assim, existem muitas similaridades entre as duas línguas e eu consegui, em alguns momentos, estabelecer algumas conversas, inclusive com crianças, com meu parco francês.

 

 

Belo Haiti, belos haitianos

 

Mesmo com todas essas contradições, Porto Príncipe – e, imagino, o Haiti como um todo – tem uma beleza encantadora. Cercada de montanhas, a cidade tem uma natureza facilmente acessível a carro, e no último dia Dharma, Daniel, Tasha e eu fomos a uma cachoeira pequena e bem gostosa, onde tive a oportunidade de fazer algo que eu amo: tomar banho nu. No caminho, pela trilha, encontramos vários haitianos lavando e secando suas roupas, e outros que também tinham vindo para fazer trilha e se banhar nas cachoeiras (havia outras, mais para frente, mas não tivemos tempo de ir lá). Foi uma experiência interessante e nunca antes vivida, tomar banho nu de cachoeira e de repente ver uma dezena de haitianos chegando e me observando, até eu finalmente decidir vestir meu short e voltar a meu hábito brasileiro de mostrar quase tudo – mas não tudo.

 

Mas a joia mais preciosa que encontrei no Haiti não foram as belas paisagens: foi o povo haitiano. Eu fiquei absolutamente encantado com a vivacidade do povo, a despeito da pobreza vivida por tantos. Em um dos dias por lá pensei: será que isso acontece porque quase ninguém no Haiti assisti TV? Eu tenho a sensação de que a televisão, mesmo que transmita bons programas, é em si uma tecnologia que estimula a letargia e rouba a energia. Dharma, numa conversa, me confirma que sim, que ele também sente que a quase inexistência da cultura de massa permite que os haitianos mantenham uma vivacidade que ele não enxerga em outros países onde as pessoas são dominadas pelo que o indiano P.R. Sarkar chamou de “pseudo-cultura”. Outro amigo meu argumenta que esta vivacidade é a mesma que ele encontra nos países africanos que visita regularmente, e que é parte do “DNA” do povo africano.

 

Essa vivacidade se expressa no olhar dos haitianos que conheci, em sua doçura e, ao mesmo tempo, em sua energia forte. Segundo as pessoas com que conversei, os haitianos são, em geral, muito politizados – ouvi um relato em que, voltando de uma outra cidade para Porto Príncipe, de carro, uma pessoa testemunhou dois jovens no banco de trás pedindo para continuar ouvindo uma estação de rádio cujo programa discutia a situação política da Ucrânia – e os dois jovens discutiam animadamente sobre o assunto.

 

Claro que é sempre complicado generalizar a personalidade de um povo a partir de algumas percepções individuais, por isso aqui não falo do Haiti como um todo, mas do Haiti que eu conheci. Esse Haiti é o que me causou cansaço físico e energético, devido à poluição, falta de estrutura, instabilidade social e política, e o que me encheu meu coração de inspiração e amor, pela beleza de suas montanhas e delicadeza e força de seus habitantes.

 

Uma das histórias mais bonitas que, para mim, refletem essa delicadeza, aconteceu no meu último dia lá: após o banho de cachoeira, sentamos num lugar sombreado, já na trilha de volta, para fazer um piquenique. Num certo momento, passa por nós um homem e sua (provavelmente) filha pequena, e nos dá bom dia. Nós respondemos. Após algum tempo, os dois voltam e ficam nos olhando. Ele fala em inglês: “ela quer comer”. Meu primeiro instinto, tendo trabalhado quase dois anos como educador social num projeto cujo público principal eram crianças que trabalhavam nas ruas, foi de dizer “não”. Eu aprendi – não pela teoria, mas na prática – durante meu trabalho, que atender esse tipo de pedido alimenta um ciclo vicioso de exploração infantil, letargia, consumismo, entre outras coisas.

 

Eu fiquei quase irritado com o pedido do homem, na verdade. Mas depois apenas respirei e pensei que o homem era inocentemente “sem noção” de nos pedir comida daquele jeito tão direto. Entretanto, Dharma imediatamente atendeu o pedido do homem, e fez um enorme e gostoso sanduíche para a menina, que o recebeu com um sorriso no rosto que derreteu meu coração. O homem agradeceu e os dois partiram, felizes. E nós esquecemos do assunto.

 

No entanto, alguns vários minutos depois, eis que ressurge o homem, agora com uma montanha de pés de alface nos braços – tantos que ele quase sumia atrás. Ele se aproximou e pediu que nós recebêssemos aqueles alfaces como agradecimento. Naquele momento meus pressupostos foram por algo abaixo. A minha experiência era com a mendicância, em que muitas vezes crianças e os adultos que os acompanham (nem sempre seus pais, pois há adultos que alugam crianças para obterem mais resultados) forçam, por vezes, um ar de “coitados” que logo muda quando recebem o que querem. E, depois de receber, partem sem demonstrar qualquer vínculo com a pessoa que lhes deu algo (como se a pessoa fosse apenas um cliente).

 

Não que eu julgue esse comportamento – é uma estratégia de sobrevivência que as pessoas encontraram, dentro de um Brasil que oferece tão poucas oportunidades para um grande número de pessoas. E não que eu os esteja responsabilizando – esse é um comportamento que só existe porque encontra ressonância numa classe média e alta assistencialista e que não se responsabiliza pelo desenvolvimento das pessoas que não fazem parte de seu círculo social. Mas, ainda assim, esta é sim uma dinâmica muito comum, e que me levou a não querer estimulá-la dando comida, dinheiro ou qualquer outra coisa para crianças ou adultos acompanhados de crianças.

 

Mas este homem, ao agradecer um simples sanduíche retirando de sua própria horta um número de pés de alface que, certamente, alimentariam mais pessoas – e, acredito, ainda valeriam no mínimo o mesmo preço – quebrou a minha lógica. Ele deixou de ser o mendigo, que na minha mente é alguém mais vulnerável que eu, e criou uma relação de igual poder comigo. Dentro de mim, ele saiu do lugar da pobreza e foi para o lugar da honestidade, da bondade, da gratidão, da generosidade e da reciprocidade. Na verdade, ele se tornou mais brilhante e poderoso do que eu mesmo me considerava naquele momento. Eu bebi de sua luz, e o agradeci internamente por isso.

 

Novamente, isso não significa que todos os haitianos agiriam como aquele homem. Durante meus dias por lá, fui chamado por algumas pessoas que pediam dinheiro. Mas, curiosamente, muito menos (muito menos mesmo) do que fui chamado em Roma, durante a viagem que fiz para lá com minha esposa, no começo do ano. E Porto Príncipe é certamente muito mais pobre que Roma. Talvez tenha sido apenas minha experiência (um amigo me disse que, sim, o Haiti tem uma cultura de mendicância muito forte), mas talvez haja nos haitianos algo que se identifica mais com a simplicidade digna do que com a pobreza que inferioriza. Talvez esse seja um dos aspectos que tornou aos meus olhos esse povo – e esse lugar – tão belos.

 

 

Dharma

 

Eu fui para o Haiti para dar um curso de Liderança Sadvipra, uma metodologia que criei junto com meu amado amigo e mentor Peter Sage, um monge inglês que mora em Washingon DC e que vem constantemente ao Brasil. Peter é coordenador global dos projetos de desenvolvimento local AMURT – daí a ligação com a AMURT Haiti. Além disso, é um dos melhores instrutores de yoga e meditação que já conheci, um facilitador de processos de desenvolvimento humano poético, criativo, gentil e sagaz, e um conhecedor de realidades – ele já viajou e viaja há mais de 30 anos por dezenas de países, e alguns de seus destinos anuais, além do Brasil e do Haiti, são países da África, como o Kenia, da Ásia, como as Filipinas e da Europa, como a Islândia.

 

Já há alguns anos, Peter e eu conversarmos sobre fazer algo juntos, e finalmente concluímos que nosso desejo comum é o de colocar a sabedoria do Tantra Yoga, especialmente aquele sistematizado por P.R. Sarkar, para ajudar mais pessoas a desenvolver sua capacidade de liderança. O yoga é muitas vezes visto no Ocidente apenas como uma prática corporal ou, no máximo, como uma prática de meditação ou de elevação espiritual, num caráter mais religioso. Mas a filosofia completa do Yoga, como a do Tantra Yoga de Sarkar, possui um vasto espectro de conhecimentos, que vão desde ferramentas de desenvolvimento pessoal até princípios para o desenvolvimento social, político e econômico, abrangendo propostas de economia cooperativa, estrutura política descentralizada, técnicas para otimização da indústria e da agroindústria, entre outros. Portanto, assim como acontece com outras fontes de sabedoria espiritual, como a antroposofia, nós decidimos expandir o yoga para fora das escolas de yoga e leva-lo para o contexto do desenvolvimento pessoal, profissional, organizacional e social.

 

Desse desejo, nasceu o programa de Liderança Sadvipra (sadvipra é uma palavra em sânscrito e significa, em linhas gerais, buscador da verdade), para o qual desenvolvemos dois currículos: um mais curto, focado no desenvolvimento pessoal do líder, e outro mais longo, que inclui os aspectos organizacional, social e político. Resolvemos começar, nos primeiros anos, com o mais curto e, quando o campo já estiver mais fértil e sólido, implementar o segundo. Em 2013, fizemos um primeiro curso experimental no Brasil. Haiti foi o segundo e será seguido por um novo curso no Brasil e, em seguida, nos Estados Unidos e nas Filipinas.

 

Este projeto, bem como tudo que tenho feito na minha vida, é uma expressão direta e muito gratificante do meu propósito de vida: contribuir para a plena expressão de líderes do coração, que co-inspirem uma cultura sustentável no planeta. Esta frase, claro, não é apenas um slogan inspirador: cada palavra possui desdobramentos conceituais e práticos muito claros em tudo que sou e faço. Um desses desdobramentos, que também está ligado a meus valores, meus objetivos estratégicos, a minhas visões interna (quem quero ser) e externa (o mundo que quero criar), é investir em atuar com pessoas e organizações de contextos diferentes (empresas, ONGs, comunidades rurais, urbanas, governos, comunidades espirituais, redes) e de culturas e lugares diferentes. Portanto, esta viagem para o Haiti, para dar este curso, numa organização como a AMURT, sempre ressoou como uma forma potente e bela de realizar meu propósito.

 

A palavra que utilizamos na Liderança Sadvipra para falar de propósito é Dharma. Esta é uma palavra cada vez mais conhecida no Ocidente, e geralmente é traduzida como missão ou ação correta. Outra tradução, talvez a minha preferida, é “a essência natural de cada entidade”. Assim, Dharma é o que fazemos quando somos nós mesmos, espontaneamente – e isto é nossa missão. A investigação do que é e de qual é nosso Dharma é a primeira reflexão deste curso inicial de Liderança Sadvipra, no qual cada participante explorará de forma teórica, prática e no próprio corpo sete tendências fundamentais do líder sadvipra. Essas tendências nascem nos sete centros principais de energia do corpo propagados pelo yoga (os cakras) e podem ser fortalecidos pelo correto entendimento corporal e mental, bem como pela prática constante de alguns princípios. A reflexão sobre Dharma é justamente a que acontece durante a investigação do primeiro cakra.

 

Uma das belezas de vivermos nosso Dharma é a possibilidade de podermos relaxar e testemunhar as coisas acontecerem sem muito esforço, pois como nosso propósito é um lugar de espontaneidade e poder, cada pequeno passo que damos gera um mundo de sincronicidades, e traz a sensação constante de que o universo está conspirando a nosso favor. Mesmo quando recebemos desafios, se olhamos com cuidado para eles, enxergamos alguma lição fundamental que nos ajudará a avançar em nosso propósito. E assim foi com tudo nesta viagem: cada pessoa que encontrei, cada conversa que tive, parecia talhada com perfeição para que eu recebesse o que precisava neste momento da minha vida. E tudo que vivi nos últimos meses – inclusive ter focado em aprender francês – parece ter me preparado para retirar o melhor dessa experiência agora.

 

Mesmo o desafio de ter que ter dado o curso sozinho, pois no fim Peter não pôde ir, por algumas questões urgentes que precisou resolver, parece ter acontecido para que eu pudesse ter realizações muito profundas sobre mim e meu propósito. Ananta, ou Jean Pierre, um lindo e doce jovem haitiano, e um dos participantes do curso, me disse no último dia do treinamento que quando ele me viu, ele não achou que eu seria capaz de realizar esse trabalho sozinho, mas que depois da primeira hora, e ao fim do primeiro dia, ele já estava completamente convencido. Um outro participante, mais velho, disso no segundo dia que ele havia vindo ao treinamento com a certeza de que seria chato e de que ele não aprenderia muita coisa, mas que agora ele sentia que sairia de lá com uma bagagem recheada. E esse é o poder do propósito: quando estamos alinhados com o que viemos fazer aqui, nunca estamos só ou desamparados, pois a força que guia as estrelas está nos guiando também. Eu certamente dei meus pequenos passos, compartilhando tudo que sei e sou como facilitador, mas o resultado inspirador ao qual chegamos juntos ao final do curso só foi possível porque, junto com a minha força, havia a força de todo o grupo, e de todo o universo.

 

Nós éramos um grupo de 16 pessoas, contando comigo. A maioria era de haitianos que trabalham como animadores ou educadores sociais nos diversos projetos de desenvolvimento local da AMURT – Haiti. Além deles, havia alguns voluntários, como Daniel e Tasha, e Dharma, que é o coordenador geral dos projetos. A tradução era um desafio: Dharma não estava sempre conosco, e pela manhã a pessoa que fazia a tradução, embora muito querido, não era tradutor profissional, e portanto nem sempre conseguia traduzir o que era dito, ou traduzia uma outra coisa, diferente do que eu havia falado. De tarde, tínhamos Michel, um tradutor profissional e também muito querido.

 

Ainda assim, todos os pontos essenciais conseguiam ser transmitidos. O curso começou com um dia de apresentações mútuas, uma passada geral sobre o que é liderança sadvipra e sua relação com os cakras, e pela prática de algumas ferramentas de conversa significativa, como o círculo. Neste dia, a magia que viveríamos juntos já começou a aparecer: as pessoas iam abrindo sorrisos e seus olhos iam brilhando à medida em que conversávamos sobre um novo jeito de liderar, menos impositivo, mais doce e livre, em que o outro não está a serviço do líder ou da metodologia, mas ao contrário: o líder e a metodologia se adaptam às necessidades reais das pessoas. No fim do segundo dia, após a reflexão sobre Dharma (1º cakra) e como se nutrir da força de nossos grupos e comunidades de apoio (2º cakra), todos nós já estávamos absolutamente maravilhados um com os outros.

 

A roda de partilha do Dharma de cada um, no fim da primeira manhã, foi particularmente especial. À medida que cada um ia compartilhando sua frase de propósito, construída com muito carinho ao longo da manhã, os outros iam se entusiasmando e fazendo pequenos sinais com o corpo, com a voz e com o olhar. Houve até quem quisesse aplaudir o que estava sendo dito. Todos ficaram encantados com a beleza um do outro, com o brilho único que cada um trazia para esta vida e que, mesmo com eles já se conhecendo há alguns anos, não estava claro nem para si, nem para os outros. Depois dessa manhã, a palavra “Dharma” entrou no vocabulário deles e foi constantemente repetida em muitas partilhas, até o último momento do curso. Isso me trouxe de novo a certeza de que todos – absolutamente todos – têm o seu Dharma, e que estar em contato pleno com ele é estar em contato pleno com a parte mais amorosa e poderosa de nossa alma.

 

Os presentes

 

No projeto Senhor Sustentável (um dos empreendimentos que toco dentro da Comunidade SER, a organização que co-criei com outros várias incríveis pessoas), nós dizemos que “o presente é um presente”. E, de fato, quando estou plenamente aberto para o aqui e agora (o que inclui estar presente nas minhas lembranças do passado e em meus projetos para o futuro) coisas extraordinárias acontecem. E durante os dias de cursos, elas aconteceram sem parar.

 

À medida que o curso ia avançando, a sensação é de que todos nós estávamos nos apaixonando – um pelos outros e todos pelo próprio Amor, na sua forma maior. À medida que avançávamos pelo 3º cakra, aprendendo a identificar necessidades e desejos e expressá-los com nosso fogo criativo – em vez do destrutivo, e pelo 4º cakra, investigando como transcender dicotomias e abrir o coração para trabalhar com a complexidade, os testemunhos iam ficando mais pungentes e tocantes. Algumas pessoas relataram estar entendendo pela primeira vez a filosofia da organização na qual trabalham – alguns há cerca de 10 anos. Muitas relataram sua satisfação por sentir que tudo que estava sendo trabalhado tinha um profundo significado e conexão com a vida prática deles. Nós começamos a refletir sobre o Haiti que queremos, integrando eventos difíceis, como o terremoto vivido há alguns anos, como elementos que poderiam ser incorporados a uma narrativa criativa e poderosa que cada líder é capaz de cocriar com os outros e com a vida. As pessoas começaram a falar para Dharma, nos bastidores, que o treinamento deveria ser dado para a organização inteira, e que eles gostariam que nós (incluo aqui o Peter, mesmo se ele não esteve fisicamente presente) voltássemos outras vezes, para continuar o aprendizado.

 

Claro que a parte mais importante de tudo isso – o amor e a felicidade gerados por todos nós – não dá para descrever aqui. É impossível de se transmitir algo como isso em palavras. Mas talvez seja possível compartilhar um relance, em dois momentos muito significativos. No último dia, logo após o almoço, nós fizemos uma dança circular, usando o Kiirtan (mantra cantado em voz alta, com instrumentos) Baba Nam Kevalam (que significa “Tudo é expressão do Amor”). Na dança, todos abençoam uns aos outros, e ao fim todos terminaram numa espécie de êxtase – mesmo aqueles que poderiam ter algum preconceito, por praticarem uma religião específica. Ainda assim, eu comentei que eles poderiam fazer essa dança nas comunidades em que trabalham, mas traduzindo o mantra para o creole. Eles imediatamente fizeram isso, e nós combinamos de refazer a dança ao final, agora em creole.

 

Ao final, depois de um exercício para estimular que cada pessoa se colocasse como líder como instrumento da vida ou de uma força maior, dançamos cantando em creole e terminamos virados para o centro, abençoando a todos nós e ao mundo. Ao fim, espontaneamente, os haitianos puxaram um grito que é, na verdade, um grito de guerra dos praticantes de Ananda Marga (a organização criada por P.R. Sarkar), que significa “Ao Infinito Amor, Vitória!”. Nós nos abraçamos e começamos as despedidas.

 

Quando as despedias já estavam acabando, Steeve me puxou no canto, trazendo com ele uma das participantes. Durante todos os dias do treinamento, eu observei atentamente esta mulher: seus olhos doces e simples, seu ar humilde e sua vibração bondosa me conquistaram logo de cara. Steeve me disse: “ela pediu que eu viesse junto porque ela quer te falar uma coisa”. Eu concordei. Então, ela me olhou nos olhos. Ela não simplesmente olhou na direção dos meu olhos. Ela OLHOU nos meus olhos. Com doçura e firmeza. E falou algumas palavras em creole. Steeve traduziu: “Ela disse que o nome dela é Marianette. Mariannete. E que ela espera que você nunca esqueça disso”. E eu derreti. Derreti totalmente diante daquele gesto tão singelo, tão poético e tão profundamente terno.

 

Seguir em frente

 

E é claro que, agora, eu quero mais. Todos nós saímos encantados. Em todos os tempos livres, e no meu último dia, durante o passeio até a cachoeira, Dharma, Daniel, Tasha e eu já esculpimos chamados, desejos, projetos, e reconhecemos uns nos outros um enorme desejo de seguir em frente. Só que cada vez mais, fiz questão de afirmar, num passo mais respirado, colaborativo, investigativo, e conectado com o propósito do que estamos fazendo. Não quero mais me deixar levar por qualquer pressa assistencialista ou super empreendedora, baseada numa liderança heroica que já não me faz mais sentido.

 

Por isso, desde já estamos traçando juntos um caminho para empoderar líderes da AMURT e a organização como um todo para que possam cocriar uma organização mais colaborativa e sustentável. Queremos chamar uma conversa com toda a organização – não apenas com as lideranças principais. Queremos co-anfitriar um planejamento estratégico que já seja, em si, um treinamento na arte da liderança colaborativa. Queremos praticar a Liderança do Coração. Queremos contribuir para expandir o que vivemos juntos e chamar outras organizações e, aos poucos, lideranças em outras esferas para construir um Haiti mais sustentável.

 

Não posso dizer que conheci o Haiti a fundo. Entretanto, num nível mais além do que o das palavras, sinto que há um Haiti – talvez apenas o meu Haiti, mas ainda assim, ele é um lugar verdadeiro e significativo – que mora em meu coração. Um lugar cheio de Marianettes, que eu sempre guardarei dentro de mim.