Devoção – a relação sustentável definitiva

Por Gustavo Prudente

 

Nós, seres humanos, estamos o tempo todo buscando nosso “abrigo mais seguro”, como diria o filósofo indiano Prabhat Rainjan Sarkar. Um lugar de felicidade que seja o mais duradouro, ou sustentável, possível. Nessa caminhada, encontramos diferentes níveis de bem-estar e segurança em portos-seguros como o dinheiro, a família, a relação amorosa, os amigos, o trabalho, a realização de um propósito maior de vida e a espiritualidade.

 

Como somos seres que basicamente se relacionam (até mesmo de olhos fechados “conversamos” com nossa consciência ou com referências internas nossas, como Deus), nós buscamos também a relação que seja mais segura e que nos seja por mais tempo fonte de prazer e felicidade. Sabemos que, em geral, colegas são fontes mais sustentáveis de felicidade que meros desconhecidos, amigos mais que colegas, amigos íntimos e/ou família mais que amigos. Mas mesmo essas relações não se mostram fonte constante, eternamente durável, de felicidade, pois dificilmente admiramos e nos nutrimos de nossas relações, mesmo as mais íntimas, o tempo inteiro. Além disso, cada relação nos nutre em algo específico, e dificilmente nos relacionamos com algo ou alguém que supre todas as nossas necessidades.

 

Haveria uma relação capaz de nos nutrir constante e plenamente, sendo fonte eterna de felicidade? Uma relação mais que 100% sustentável, pois contribui para a sustentabilidade de outras relações que travamos com as pessoas ao nosso redor?

 

Minha experiência de vida me levou até agora a acreditar que sim. Existe uma relação sustentável definitiva, que se estabelece por meio da devoção, ou seja, de devotar amor pleno e incondicional à vida ou à consciência maior que nos rodeia. E este amor, para existir em relação, precisa ser canalizado para algo ou alguém que represente a vida ou a consciência, para que assim esses conceitos tão abstratos possam ser amados de forma concreta e personalizada. Devoção significa amar uma figura com forma e nome como portal para acessarmos a fonte maior da vida, processo que é exemplificado muito bem na cultura oriental por meio do arquétipo dos mestres.

 

Falar em devoção em nossa cultura ocidental é sempre muito delicado porque ela facilmente pode ser confundida com submissão ou fé cega. Nesses casos, não há amor (característica essencial da devoção), mas no máximo paixão, ou qualquer outro sentimento que ajude a preencher uma dor ou vazio subjacente que surge quando não estamos amando ou sendo amados (pois estar submisso ou seguindo cegamente algo ou alguém nos ajuda a “abafar” esse sentimento de dor e vazio com um pseudo sentimento de amor, por obtermos aprovação daquele que nos domina ou a quem seguimos). Nesse caso, o que existe não é devoção, mas a busca por atrair a aprovação ou evitar a desaprovação.

 

Na devoção, existe um sentimento de amor tão profundo e verdadeiro, que a única ação possível é a gratidão. Damos o melhor de nós mesmos para o outro porque estamos tão felizes que a única forma de agradecer é fazer algo pelo outro. Quando o outro é um amigo, um filho ou uma namorada, agradecer pode significar fazer pequenos gestos de carinho ou se esforçar para ajudar o outro em suas dificuldades. No caso desse outro ser a vida ou a consciência maior, ou seja, um outro que já tem tudo em si, a única alternativa restante é… cuidar da vida, que implica cuidar do planeta e de todas as relações que nele nutrimos. Por gratidão.

 

Assim, o devoto é aquele que se sente amado por algo ou alguém que já possui tudo em si, a quem nada falta, e devolve esse amor cuidando desse todo da melhor forma possível. Como esse todo inclui os rios da minha cidade, eu empreendo ações ecológicas para proteger e limpar os rios. Como esse todo inclui minha família, eu nutro relações saudáveis e de respeito com ela. Como esse todo inclui meus desafetos, eu exercito constantemente a prática do perdão. Tudo isso sem a intenção de ser bom ou de ser admirado. Apenas por gratidão. Por ser a única forma de amar um todo que nos ama com eterna abundância.

 

Nem entro aqui no mérito de se esse todo é o que chamamos de Deus, ou se ele existe. Estou falando do nível mais básico de condicionamento interno, psíquico e biológico. Sabemos hoje que nosso cérebro reage de forma muito parecida a eventos vividos e eventos imaginados, então se estamos nos relacionando com um ser real ou não, tanto faz. O que importa é que, para nosso cérebro, estamos constantemente (até de olhos fechados) nos relacionando com um ser que nos ama e que é por nós amado, plenamente. E essa relação, fonte de nutrição constante, torna-se, portanto, fonte de uma sustentabilidade perene, que pode ser replicada em diferentes níveis com as pessoas “em carne e osso” a nossa volta.

 

E como nossas crenças sobre a vida influenciam diretamente tanto nosso potencial criativo, quanto nossa motivação para empreender nossos sonhos e as estratégias que desenvolvemos para realizar essas conquistas, ter uma figura interna, que eternamente nos apóia e motiva, nos ajuda a reforçar constantemente a sensação de que, sim, nós somos capazes. De que nós vamos conseguir. De que a vida é abundante e de que todos os recursos já estão aqui, ao nosso redor. De que o presente é um presente (ou seja, uma fonte abundante de gratas surpresas). Sabemos disso porque há algo em nós que nos apóia e nos diz que, sim, não estamos loucos: a vida é naturalmente sustentável.

 

Por isso, sugiro um experimento: sente-se de olhos fechados diariamente e crie uma relação com algo ou alguém que represente, para você, o todo. Não basta ser alguém que você “ama muito”. Imagine que você pudesse personalizar ou materializar a totalidade da existência, ou do universo. Como ou quem seria essa personificação? Pode ser uma figura religiosa ou algo ou alguém bem inesperado. Seja como for, enamore-se dessa figura e comece a criar uma relação com ela, conversando com ela inclusive. Ouça o que ela diz e responda, se for o caso. Se esse exercício for feito diariamente, depois de sessenta dias, gostaria de ouvir a sua história. Gostaria de saber se seu cotidiano está ou não ao menos um pouco mais sustentável, seja nos aspectos mais sutis – nas suas relações interpessoais, por exemplo – ou nos aspectos mais práticos – por exemplo, a maneira como você cuida do seu lixo. Minha aposta é que a devoção fará de você um ser humano muito mais (naturalmente) sustentável.

 

Gustavo Prudente é laboratório-vivo de sustentabilidade no projeto Senhor Sustentável (www.senhorsustentavel.org) e membro da Comunidade SER – Sustentabilidade, Educação e Arte. gustavobprudente@gmail.com