Velar o Fogo do Masculino Sagrado

Em 2014, um grupo de amigos próximos e eu resolvemos iniciar um Círculo de Homens. Depois de várias tentativas de marcar um primeiro encontro, enfim achamos uma data, e acabei não indo no tal encontro, pois nesse mesmo dia fui jantar com uma pessoa que considero um grande mentor para mim. Considerei que aquele havia sido meu Círculo.

Durante o ano, chegamos a ter, talvez, cinco encontros, que foram muito nutridores para muitos de nós, e também geraram incômodos. Um deles dizia respeito à nossa inexperiência em equilibrar o “papo sério” – de nossas feridas, do sagrado etc – e o papo “engraçado” – as aventuras sexuais, as histórias curiosas etc. Terminamos o ano num tom disperso, sem saber exatamente quando e como o Círculo iria continuar.

Em março deste ano, vi que uma data que coincidia com nosso pulso mensal de encontros (a terceira sexta-feira do mês) estava livre para mim, e mandei uma mensagem para o grupo que criamos no Whats App, sugerindo que fizéssemos o primeiro encontro do ano. Algumas pessoas confirmaram, inclusive dois amigos que haviam acabado de entrar no grupo, e estavam bem animados para um primeiro encontro.

Assim, na terceira sexta-feira do mês, na virada do ano astrológico, às 18h30, desliguei-me de meus afazeres de trabalho e sentei para meditar, como faço todos os dias, contando com que as pessoas começariam a chegar às 19h, que era nosso horário combinado. E aí começaram uma sucessão de frustrações, começando por um grande amigo que estava comigo lá desde a hora do almoço, esperando para participar do Círculo, e resolveu ir embora, para atender uma demanda familiar.

Enquanto eu meditava e, de olhos fechados, não ouvia a porta de nosso espaço abrindo, ou a campanhia tocando, meu coração ia me dizendo que ia haver uma debandada geral. Aquilo foi me angustiando, e eu quase ia me irritando por antecipação. Negociava comigo mesmo, dizendo que as pessoas só deviam estar atrasadas, como de costume. Mas, de fato, ao terminar de meditar, já passadas as 19h, vi no Whats App que vários haviam desistido. Entretanto, a confirmação de três amigos, mesmo sabendo que eles chegariam bem atrasados, me fez persistir no encontro.

Nesse período, entre eu meditar e esperar esses amigos chegaram, caiu uma ficha. Já há algumas semanas, eu refletia sobre o Círculo de Mulheres que também acontece em nosso espaço, há mais tempo e com mais regularidade, e sobre os vários Círculos de Mulheres que vejo acontecendo por aí, anfitriados ou contando com a participação de pessoas próximas a mim – inclusive minha esposa. Refletia, também, sobre a prática de uma querida amiga, com quem tenho passado por um processo de coaching, e que, além de arrumar lindamente o espaço onde temos nossas sessões, cuida muito bem em preparar energeticamente o espaço, chamando a presença de todos os guias e mentores que considera importantes para aquele trabalho.

A ficha que me caiu, então, é que nós, homens, não cuidamos bem dos espaços. Nós podemos construir a casa, mas quem em geral a decora e cuida de mantê-la limpa, arrumada e viva, é a mulher. E era exatamente assim com o nosso Círculo: a gente simplesmente chegava e sentava mais ou menos em círculo, no máximo acendendo uma vela, pedia talvez uma pizza, e conversava. Quase nenhum cuidado com criar um ambiente convidativo, em se conectar com as energias que queríamos que estivessem naquele trabalho. Sem trazer a beleza e a poesia de um ritual significativo. Quantas vezes, pensei, quis trazer oráculos, flores, velas, algo que trouxesse o sagrado para aquele momento, e não lembrei, ou não priorizei?

Olhei para aquilo e, naquele momento, fiz um pedido para mudar. “Quero ser um homem que cuida”, pensei. E então resolvi montar um belo círculo com o que tinha ali. Arrumei as almofadas. Acendi a vela. Ornei-a com imagens masculinas que estavam em nosso altar: Shiva, Buda, Jesus Cristo, Anandamurtii, entre outros. Coloquei no centro umas flores que estavam lá, no canto da sala. Peguei dois livros que estavam na minha mochila, e que sentia que se conectavam com o momento. Quando terminei, senti a diferença na qualidade da energia presente. Uma nota mais grave, e mais retumbante, estava agora sendo entoada.

Então resolvi invocar as consciências que, no meu coração, eram referências do masculino sagrado. Cantei para muitos daqueles seres do altar: mantras para Shiva e Buda, canções cristãs, entre outras. E a cada canção, sentia que a roda estava mais preenchida, ainda que fisicamente só eu estivesse ali. Logo em seguida, dois dos três amigos chegaram, e um deles tocou também algumas músicas xamânicas, e o tom do sagrado e a energia de poder foi crescendo e crescendo. Senti a força do cuidado, e desejei ser um homem que cuida. Não só dos espaços, mas das relações, das pessoas e dos seres.

Nesse meio tempo, o terceiro amigo chegou, trazendo algumas esfihas, para mim e para ele, e foi para a cozinha comer com aquele meu amigo que resolveu ir embora para cuidar de sua demanda familiar, mas que ainda estava ali, resolvendo últimas coisas antes de sair. Eu e os demais já estávamos cantando e abrindo o Círculo, e eu tinha a expectativa de que ele viesse se juntar a nós o quanto antes. Mas ele não veio. Fui até a cozinha e dei um toque para que ele viesse. Ainda assim, ele demorou. E eu comecei a ser tomado por uma irritação profunda. Que fez com que uma segunda e importante ficha caísse.

Enquanto um lado meu tinha um desejo enorme de ir na cozinha e “dar uma bronca” nele, para que viesse logo, um outro lado meu não via o menor sentido nisso. Não queria ser o pai mandão e autoritário. Estávamos ali, inclusive, por sermos homens que queriam romper com a rigidez patriarcal. Mas, ao mesmo tempo, eu queria muito que ele se comprometesse com aquele nosso momento. E foi aí que me caiu a ficha: comprometimento. Nós, homens, muitas vezes não nos comprometemos. Não é à toa que essa é uma das principais reclamações que as mulheres nos fazem: “vocês não querem compromisso”. Não é à toa que há tantas mulheres lutando sozinhas com seus filhos, pois, claro, nós, homens, não nos comprometemos.

Entendi, então, que eu não queria mandar no meu amigo, nem dar bronca. Eu queria sentir compromisso. E eu estava tão irritado porque eu tinha raiva da minha própria falta de compromisso. Eu precisava que meu amigo viesse porque eu não conseguia me comprometer comigo mesmo, e precisa que ele seguisse minha ordem, para eu ter uma pseudo-sensação de compromisso. O que me impedia de me comprometer com estar ali, num espaço importante para mim, tendo somente as presenças invisíveis, ou apenas os dois amigos que já estavam lá? Eu não queria assumir que o compromisso é meu, e é comigo, com o que me é caro. Eu não queria assumir meu compromisso de velar o fogo do masculino sagrado, e queria que os outros fizessem isso por mim.

E, ali, comecei a assumir esse compromisso: eu irei aprender a velar o fogo sagrado do masculino. E isso, eu já havia entendi, implicava, além de me comprometer, aprender a cuidar. Alimentado por essas reflexões, quando abrimos a nossa roda de conversa (ainda sem meu terceiro amigo ter entrado), compartilhei minhas sensações e reflexões, que ressoaram profundamente nos meus dois amigos presentes, e a partir daí a roda foi se aprofundando e ficando mais e mais forte, e fomos sentindo que algo extremamente especial estava acontecendo naquele momento. Quando, enfim, o terceiro amigo chegou, compartilhei com ele tudo que havia vivido e sentido, e ele não só entendeu, mas também sentiu que aquelas eram reflexões muito importantes para ele.

Abrimos, então, nossas caixas de pandora, e conectamos com o que nos pareceu não apenas a nossa dor – mas a dor do masculino no mundo. Cada um na roda trouxe percepções e experiências únicas e que não poderiam ser reproduzidas nesse texto – ao menos não o lugar para onde tudo isso nos levou, pois isso só estando lá. Um dos meus amigos revelou o que já estávamos sentindo com nosso corpo: a energia daquele Círculo era vazia e fraca, pois esse é o estado do Círculo de Homens do mundo hoje. É vazio porque não nos comprometemos. Não aparecemos. Chegamos atrasado. E não somente no encontro do Círculo de Homens. Mas na vida. Em nossos casamentos. Na vida de nossos filhos. Na realização de nosso propósito de alma.

O Círculo é fraco porque não cuidamos. Fazemos de qualquer jeito. Desrespeitamos o sagrado do que somos e do que fazemos, levando tudo para o deboche e o escracho. Desprezando o sério e sagrado como pesado. Como algo que não interessa ao homem. Como frescura. Somos adolescentes. E não há nada de mais em debocharmos e sermos adolescentes. Esse é um de nossos papéis sagrados. O problema é só ser isso. E quando não somos adolescentes, somos o pai narcisista ou autoritário. Somos o patriarcado que lutamos tanto para transformar. Claro que é importante não generalizar: não somos todos assim, nem somos assim o tempo inteiro. Mas esse é o “estado da arte”, em termos gerais, atualmente. Ou, ao menos, nós, deste grupo, sentimos assim.

“Sou um moleque”, disse ao meu grupo. “E embora eu esteja brincando de chamar todas essas entidades, como Shiva, Buda e Jesus, para esse Círculo, será que se eles realmente estivessem aqui, eu me sentiria digno de estar sentando no mesmo Círculo que eles? Será que eu estou honrando minha dignidade masculina?”. E que fique claro que essa percepção não tem peso. Não se trata de ser um super-homem. De me cobrar excessivamente. Mas apenas de amadurecer. De verdade. E não de faz de conta, do tipo “eu ganho dinheiro, tenho um cargo alto no meu trabalho e seguro muita bucha, então eu sou gente grande”. Trata-se de sair da adolescência do masculino ferido, com raiva de tudo represente compromissos e cuidado, limites e firmeza, como se tudo isso fosse rigidez. E também sair do patriarcado, com raiva de tudo que é espontâneo e vivo, e que foge do controle.

A imagem que me veio foi a seguinte: é como se, em algum momento, houvesse existido sacerdotes que velavam pelo fogo do masculino sagrado. Homens fortes, dignos e bons. E aí, num certo ponto, alguma ferida fez com que o fogo se apagasse e, sem perceber, continuássemos a fazer os mesmos rituais, velando mecanicamente um fogo morto. E quanto mais sentíamos o frio do masculino se apagou, mas sem admitir que se apagou, repetíamiios ainda mais mecânica e rigidamente os rituais, achando que o ritual em si iria nos fazer sentir o fogo. E quanto mais fazíamos isso, mais raivosos e rígidos ficávamos. É horrível sentir o frio de um fogo vital que se apagou.

Assim, o patriarcado, cada vez mais um conjunto de rituais rígidos e sem vida, foi se deteriorando. Até que questionamos o ritual sem significado. Nos libertamos. Só que, equivocadamente, entendemos que o que nos aprisionava era o ritual, e não a falta do fogo. Achamos que o ritual era maligno. E decidimos que não queremos mais os rituais. Para que cuidar e se comprometer com eles? Queremos ser “livres”. Assim, continuamos com o fogo morto, virando agora adolescentes sem rituais e, ainda, sem fogo. Continuamos perdidos, mas com a liberdade de gritar e reclamar que estávamos perdidos. E quem sabe era esse o próximo passo necessário, porque que fomos, então, descobrindo que a questão não é o ritual – é o fogo. Precisamos reacender o fogo do masculino sagrado. E cuidar dele.

Sem raiva dos rituais, e do compromisso e cuidado que eles pedem, e também lúcidos o suficiente para não aceitar mais rituais vazios, queremos nos recolocar na posição de sacerdotes que velam pelo fogo do masculino sagrado. Queremos aprender, com os mentores invisíveis, e os visíveis – aqueles homens que nos inspiram a doce virilidade do masculino equilibrado – como velar o sagrado. Queremos recuperar nosso respeito e nossa dignidade. De ser homens. Sabendo que, com isso, não precisaremos depreciar o feminino nem obriga-lo a nos reconhecer. Aquele que é digno é reconhecido naturalmente pela sua dignidade.

E entendemos que esse é um trabalho hercúleo. Aliás, hercúleo vem de Hércules que, não à toa, era um homem. E que matou a sua esposa e seus filhos. E teve que passar por grandes obras e provações, até recuperar o seu masculino equilibrado. Isso significa que, de fato, achar que cuidar e se comprometer é algo importante e respeitoso, e não papo de homem babaca, complicado etc, é algo difícil e demandoso. Pode parecer bobo, mas acender uma vela e arrumar o centro de uma roda de conversa – algo tão natural para o feminino – pode ser um bloco de uma tonelada para um masculino ferido.

Isso ficou ainda mais evidente quando, durante o encontro, ensaiamos fazer uma dança de escoteiro proposto por um de nós. Um misto de emoção e vergonha me tomou. Mesmo eu, tão reconhecido por ser um homem “com muita energia feminina” (seja isso bom ou não), estar ali, de braços dados, cantando com outros homens, me deixava embaraçado. Os softwares do masculino patriarcal me assombravam quase que como uma voz débil, de pano de fundo. E isso nos levou a refletir o quanto que, além da dificuldade de comprometimento e cuidado, nós, homens, temos muita dificuldade em sair do que um de nós chamou de nossa “autonomia territorial”, para assumir e compartilhar nossa vulnerabilidade.

Percebemos que um dos possíveis motivos de não aparecermos no Círculo, ou de chegarmos atrasados, é uma preguiça difusa e de fundo, cuja raiz talvez seja a antecipação de que teremos de fazer algo que é muito, muito demandoso para nós: nos abrir, falarmos de nossos sentimos, expormos dores e sonhos. A sério. E não de forma escrachada. E para outros homens. Mesmo nós que, conscientemente, defendemos isso, temos, inconscientemente, essa dificuldade. É quase um condicionamento biológico, parece. E talvez seja mesmo. Chegamos a comentar que, se houvesse uma única mulher naquela roda, a tarefa seria muito mais fácil. Que a presença feminina nos tira da nossa postura automática de sempre manter um lugar de fortaleza perante outros homens. Que duro perceber que, ao contrário das mulheres, que muitas vezes antecipam esse momento de troca como um momento de alívio e relaxamento, nós antecipamos esse momento como de esforço – muito esforço.

Por isso, nesse Círculo tão auspicioso, depois de todo esse mergulho – um ano em duas horas, me pareceu – assumimos uma tarefa, que quero estender a todos os homens que estiveram lendo esse texto, e que se sentirem chamados. Como uma primeira tarefa de aprendizagem em nossa jornada de nos tornarmos dignos de velar o fogo do masculino sagrado, iremos acender, com cuidado e compromisso, uma vela, toda sexta-feira, às 19h, e deixa-la queimar em nossos corações, em honra a nossa luz e a nossas feridas, e à luz e às feridas do masculino desse planeta. As mulheres também são bem vindas a fazer esse exercício, mas é muito importante que nós, homens, o façamos, para mudar nosso padrão. E quem não puder acender uma vela física na hora, que a acenda dentro de si. Mas que faça isso porque realmente não pode acender a vela física – e não por preguiça ou por ser “mais fácil”.

Claro que esse é apenas um exercício, e cada um pode criar o seu. Sendo realista, nosso compromisso é até o próximo Círculo – não queremos uma tarefa tão grandiosa que não possamos alcançar. São nossos primeiros passos, e queremos dá-los com cuidado. Além disso, queremos agora cuidar para os Círculos aconteçam com beleza, e para que de fato estejamos lá – e, se não pudermos estar, que não larguemos de lado e simplesmente mandemos uma mensagem dizendo “não vou”. Mas que nos preocupemos em saber quem estará, para velar o fogo em nosso lugar. Queremos saber como podemos contribuir, mesmo à distância. Também queremos fazer outros exercícios: acampar juntos, conversar sobre nossa ancestralidade, aprender a não ter vergonha de dançar juntos, e se abraçar. Temos muitos sonhos. Sonhos de adolescentes que sinceramente têm vontade de crescer. E de, um dia, serem reconhecidos como sacerdotes dignos do fogo sagrado que nutre a beleza de Ser Homem. E de Ser Masculino, sejamos nós homens ou mulheres.

Vamos juntos?